quarta-feira, 22 de setembro de 2004



Antes que me esqueça (azul suave)
Estou a meio de um livro escrito por um psicólogo russo, A.R. Luria em 1968, chamado "O Caso do Homem que Memorizava Tudo". Um percussor d'"O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu", de Oliver Sacks.

No livro, que se devora como a um Da Vinci, aprendi o significado da palavra Sinestesia:

1. termo que caracteriza a experiência sensorial de certos indivíduos nos quais sensações correspondentes a certo sentido são associadas às de outro sentido;
2. LITERATURA combinação de sensações diferentes numa só expressão;
(Do gr. synaísthesis, «sentimento comum a vários» +-ia)


"No caso de C., todos os sons que ouvia produziam imediatamente uma sensação de luz, cor e ainda de tacto e paladar." Porquê o meu interesse nisto? Porque tenho uma certa tendência para associar cor a palavras, e descobri que nem é um caso raro: "Um grande número de pessoas tem indícios de sinestesia, mas muito rudimentares: «ver» cores diferentes ao escutar notas mais agudas ou mais graves; sentir que algumas notas são «quentes» e outras «frias»; «ver» a sexta-feira e a segunda-feira como de cores distintas."

O método de memorização de C. consistia em construir imagens mentais do que tinha de memorizar, e colocá-las ao longo de um caminho que depois percorria quando tinha de as recordar. Pelo que o livro escreve, C. era capaz, muitos anos depois, de se recordar das sequências que Luria lhe tinha pedido para memorizar e repetir. Quando falhava, era por erros de percepção e não de memória, porque tinha criado uma imagem que - no caminho mental que percorria ao relembrar - era pouco visível, ou estava na penumbra. Não errava, e só em raras vezes saltava elementos, fossem estes números, palavras, imagens, palavras em estrangeiro, ou palavras inventadas.

C. tinha vários problemas, como se pode facilmente imaginar. Além de lhe ser difícil ler um livro (tal a quantidade de imagens que se lhe geravam na mente), era complicado memorizar caras (porque estão sempre a mudar, como a superfície do mar), e era impossível esquecer, apagar memórias, mesmo de coisas insignificantes. Uma das suas tentativas foi escrever o que queria esquecer: "Porque não, pensou ele, usar alguns expedientes externos: escrever as coisas de que já não se queria recordar. Isto pode parecer-vos estranho, mas, para ela, era um raciocínio bastante normal. Na sua opinião, «as pessoas anotam coisas para não se esquecerem delas. Isto parece-me ridículo, por isso decidi abordar o problema à minha maneira». Segundo ele, se anotasse uma coisa já não necessitava de a recordar, mas se não a pudesse escrever tinha de a memorizar."

Tendo diário desde muito pequeno, sei de que ele fala. O método com ele não funcionou (e comigo?), mas acabou por conseguir encontrar uma forma de esquecer.

Mais palavras de C., em 1939, agora sobre comida: "(...) Estou sentado num restaurante, ouve-se música. Sabem porque é que põem música nos restaurantes? Porque altera o sabor da comida. Se escolhermos o tipo certo de música, tudo passa a saber bem. As pessoas que trabalham nos restaurantes sabem certamente isto...", "tenho dificuldade em perceber o que leio se ao mesmo tempo estou a comer - o sabor da comida encobre o sentido...", e "Escolho o que vou comer de acordo com o nome da comida, com o som da palavra. É ridículo dizer que maionese [em russo, maionez] sabe bem. O z estraga o sabor - não é um som atraente..."

Mais à frente, são descritos alguns dos "feitos" que o raciocínio imagético de C. permitia: coisas como aumentar o seu ritmo cardíaco imaginando-se a correr, aumentar em dois minutos a temperatura de uma mão imaginando-a num forno (2º!) , e simultaneamente diminuir a temperatura da outra (imaginando-a a agarrar num cubo de gelo). Mais, C. não sentia dor: "[No dentista] Sentava-me na cadeira, mas imaginava que não era eu que estava realmente ali, mas outra pessoa. Eu, C., estava apenas ao seu lado, a observar o dentista a tratar-lhe os dentes. Deixava-a sentir a dor. Não me magoava a mim, mas a «ela», percebem. Eu, simplesmente, não sinto nenhuma dor."

Ao ler livros como estes, e mesmo tratando-se de casos clínicos, acho que é impossível deixar de se pensar naquilo que se esconde no nosso cérebro.



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