quinta-feira, 24 de setembro de 2009



a pessoa errada na altura errada no local errado

Sempre pensei que este tipo de coisas só acontecia nos filmes.

Estávamos casados há alguns anos, e a passar férias juntos, no estrangeiro, como era frequente. Sempre fomos aquele tipo de casal que faz muitas coisas em conjunto, com muita actividade, como que para nos manter ocupados e impresentes um da vida um do outro. Quando sozinhos, pouco tínhamos para nos dizer, apesar de o silêncio também ter conforto e até felicidade. Amava-te, de uma forma incomum. Nunca te odiei, nunca me foste incómoda, e gostava de passar o tempo contigo.

Naquele dia, estávamos sozinhos num miradouro sobre um penhasco. Bem junto à beira, a sentir a vertigem da altitude e do vento que nos cortava o rosto. Lá muito em baixo, depois de uma queda quase a pique, um mar de árvores. Lembrava aquelas imagens que se têem quando se voa sobre uma almofada de núvens fofas.

Numa altura em que te debruçaste um pouco para a frente, para espreitar melhor a altitude, veio-me um impulso louco à cabeça, e sem me conseguir segurar ou conter, dei-te um pequeno empurrão. Só o suficiente para começares a cair, e ainda vi o ar de surpresa a mudar para pânico nos teus olhos, um olhar que nunca vou conseguir esquecer para o resto da minha vida.

 

Porquê? Porque não sou eu que escrevo as palavras, são elas que me ditam a mim.



quarta-feira, 23 de setembro de 2009



tudo começou quando

Foi num daqueles dias de Outono que amanhecem soalheiros, e à medida que as horas avançam se vão entristecendo e acizentando, e lembro-me como se fosse hoje. Presta atenção ao que te vou contar.

O sábado amanheceu com sol, e sem núvens no azul celeste. Parecia um Verão de São Martinho, sabes? A aquela altura do ano associam-se árvores a despir e pessoas a vestir, e não dias como aquele. Segui com o olhar um pássaro solitário que passou à minha frente, a voar sobre o rio, para a outra margem. Um voo alegre como aquele só podia ser de uma andorinha, pensei. Ou um pombo, e levar a minha mensagem secreta, a pequena nota que te escrevi. Eh. Não me ligues, estou a distrair-me. Deixa-me continuar.

O dia parecia não poder ser pior para o que queria fazer, lindo e brilhante. Atravessei a ponte a pé, o chão ainda molhado da chuva da véspera, o ar limpo e agradável de respirar, e fui para o café onde nos tínhamos combinado encontrar, para mais um café e pequeno-almoço a ler o jornal da manhã.

Nesse dia levava-te uma despedida como surpresa.

Estava cansado, estava triste com o fosso entre nós no teu olhar, desanimado com ter de escalar os muros do teu castelo, como se todos os dias tivesse de reconquistar o mesmo pequeno pedaço de terra, todos os dias o mesmo ritual e a mesma batalha.

Ia dizer-te adeus, sabes? a nota que escrevera tinha tudo o que te queria dizer, o que esperava conseguir dizer-te, o que esperava ter decorado palavra-por-palavra, e que tinha de sair de mim num só fôlego.

Porque nunca te disse? Não sei. Depois do que aconteceu, deixou tudo de fazer sentido.

Fui o primeiro a chegar, como era costume, e pedi o mesmo de sempre, enquanto olhava para as pessoas e esperava por ti e pelo teu olhar perdido ensonado dos sábados de manhã. Vi-te dobrar a esquina e vir em direcção a mim ao mesmo tempo que a música que começava a tocar na rádio me envolveu, e à medida que te aproximavas, como numa bolha de sabão, tudo lá fora deixou de importar. Vi o teu cabelo de quem acabara de se levantar, o teu andar decidido e preguiçoso, e o teu sorriso como nunca vi outro a nascer. Amachuquei a nota de papel que tinha no bolso, e sorri-te de volta.

Sim, claro que me lembro da música. Queres ouvir, imagino… Mas o importante é que há alturas, meu amor, em que é preciso arriscar. Por vezes o destino sorri.

Como fez connosco.

Outro desafio, o terceiro, da mesma amiga. As palavras que serviram de inspiração? Interessam mesmo? Lamechas? So what.



terça-feira, 22 de setembro de 2009



a esta hora já devia estar acordado

mas não. estou aqui a sonhar, quando podia estar a espreitar pela janela a ver o dia nascer, a vestir o fato e apertar a gravata, atar os atacadores dos sapatos pretos brilhantes, a preparar-me para o dia que aí vem, como o de ontem. em vez disso estou aqui, de olhos fechados a dormir em lençóis ainda com o fresco macio do verão. cada vez que olho para o relógio, vejo imagens diferentes. não sei se vejo cores, sei que não consigo perceber se a luz está acesa ou apagada, e não sei o que faz aqui este coelho branco gigante que olha para mim. já devia estar acordado. dormir não me faz bem. escrever a dormir não me faz bem. é como sonambulismo palavral. afinal, muito parecido com falar a dormir, mas fazendo muito mais sentido. e que sentido faço? só um. um sentido que retirei de um conto que li antes de adormecer, e que não te posso dizer qual é porque o poderias ler. e o sentido diz só uma coisa: ele concluiu que foste a segunda. eu, que ainda tenho uma oportunidade.

núvens.

(desculpa este tipo de posts crípticos, mas é o que sai quando se escreve a dormir).





estou com um feeling

digo-te. estou com um feeling. a minha bússola não tem um mas vários nortes, e como poucas muitas vezes antes, está desorientada. mas tenho um feeling. tenho aqui um feeling guardado no bolso, dentro da carteira.

por agora vou caminhando pela rua, vejo as pessoas ao meu redor, o autocarro que se aproxima da paragem que cruzo, os carros que passam na estrada, aquela senhora de idade na varanda da janela, as caixas do minimercado que aproveitam uma pausa para fumar um cigarro encostadas à parede, a estrada feita de pedras cinzentas quadradas, o passeio feito de pedras brancas quadradas.

vou caminhando, e levo o meu feeling no bolso. sei que o vou tirar da carteira muito em breve. que o vou desdobrar da dobra em quatro, e que já não vou estar mais na rua por onde me cruzo com estranhos, com carros invisíveis, com os sons e apitos da cidade onde vivo, e que não vai ser só um feeling, mas um papagaio com a forma de uma águia de asas abertas a desenhar linhas e curvas no céu, que seguro com um sorriso ao mesmo tempo que tu, deliciada na areia, segues os movimentos que faz.

por enquanto, o feeling é um quantos-queres de papel de origami, dobrado em quatro. mas não falta muito para o abrir. não falta muito para o descobrir, para lançar os dados das dobras nos dedos de uma menina, e viver o que sair. na praia.





na verdade, não estou neste momento

ligaste-me, mas sabia que eras tu e decidi não atender. para quê ouvir mais uma vez a tua voz, para quê repetir os mesmos argumentos e discussões cansativas. melhor deixar tocar. a repetição é a mesma, mas a musiquinha é bem menos cansativa.

já sei o que pensas. aborrecido ou aborrecida, que sou uma chata ou um chato, ou que estou ocupada ou ocupado, ou que sou sempre sempre igual a mim mesmo e nunca tenho tempo para as coisas importantes.

mas a verdade é que tenho todo o tempo do mundo, para as coisas importantes. e importante para mim neste momento é ver esta planta crescer com o sol da manhã, ou ver o pôr-do-sol no mar, sentada ou sentado na areia, de ombro encostado a um outro que não é o teu, e isso me fazer sentir completamente feliz.



quarta-feira, 16 de setembro de 2009



mulher com dois olhos de trovão,

porque te conheci? porque te aproximaste de mim e se cruzaram os olhares? fizeste-me estremecer os nervos do corpo, a terra abanar, e passarem-me relâmpagos eléctricos pelos olhos. verdes como os dos gatos, a brilhar na noite, é impossível não ficar preso ao que não sei ser. semeaste o caos na minha vida. não saio à rua sem ver no céu se lá estás, se me vais assustar com o teu grito, ou iluminar as noites com o teu brilho enquanto durmo com os estores apenas meio fechados, para te deixar entrar a ti para junto de mim.

o tempo começa a estar fresco. começo a precisar, aos poucos, do teu calor. mesmo que seja para acabar por ficar acordado.



segunda-feira, 14 de setembro de 2009



Mulher Diagonal, A

Nunca tive tempo para nada. Não percebo, mas parece-me só acontecer comigo. Mas deixa que te explique. Chamo-me Dorit, e não sou um peixe azul de fraca memória. Sou uma mulher de carne e osso, não tenho cabelo azul nem escamas, e vivo a vida na diagonal.

Imagino que tenha começado no leito materno, mas a primeira vez que repararam foi na maternidade: encontravam-me sempre deitada na diagonal no berço. E se me endireitavam, meia hora depois lá estava na diagonal de novo. Também nunca fui de fazer grandes birras, não havia tempo para isso, tinha de ir brincar. Fazia tudo na diagonal. Um bocadinho de choro, só para dar um sabor, um bocadinho de comida, um bocadinho de brincadeira, primeiro com brinquedos depois com amigos, um bocadinho de estudos, um bocadinho de namoros, um bocadinho de casamentos, um bocadinho de empregos.

Tudo na diagonal, e sempre cada vez mais acentuada, a viver a vida mais resumida e cada vez mais e mais depressa, a deixar coisas a meio mal começadas, uma vida de primeiros parágrafos e resumos resumidos.

Nem sei porque estou a escrever isto. Se me pedissem para reler este texto, só leria “Mulher Nunca Texto”.





indiferença

havia um episódio do twilight zone em que a pior das penas do tribunal era ser-se ignorado por todos aqueles que o rodeavam. cada condenado tinha uma marca na testa, se bem me recordo, e a convenção social era de que essas pessoas não existiam. ninguém as olhava nos olhos, ninguém falava com elas, não reconheciam a sua existência. eram como não-pessoas, no meio de pessoas com que se cruzavam na rua, uma cidade país desertos apesar de repletos de pessoas. uma condenação à solidão, fora da escuridão de uma solitária, mas capaz também ela de levar à loucura.

ter as pessoas à distância de um braço, de um olhar cruzado num passeio, e não conseguir penetrar numa barreira imposta pela necessidade de ter a sociedade equilibrada, ser-se transparente, uma convenção de distância, afinal tão actual.

e eu? porque tenho eu esta marca na testa?





nunca ninguém pergunta pelo três de paus

Vivo num castelo de cartas tão sólido que resiste à força do vento. São cartas manuscritas, cartas enviadas e não enviadas, cartas recebidas e cartas que quis ter recebido.

O meu castelo é rodeado por um fosso cheio de água, cheio de crocodilos e suas lágrimas, e tem duas portas, ambas cartas de jogar. Uma, a da direita, é um preto três de paus, uma porta de que prefiro não falar. A segunda, a da esquerda, é um encarnado Ás de copas, e só se vai abrir no mais especial dos dias, e para a mais especial das pessoas. Por mais mais forte que empurrasses, por mais rápido que corresses, nem que passasses a velocidade do som a conseguirias derrubar,

se não fores tu a pessoa certa.

Às vezes fico a olhar para a carta encarnada com o Ás de copas, com mágoa suspirante de não a ver abrir-se devagarinho, com o mistério de não saber quem a poderá atravessar.

Vivo num castelo de cartas, na minha caixa de cartas, escritas ou recebidas ou jogadas por mim ou contra mim, e quero ser eu capaz de abrir a porta, sair lá para fora, e deixar tudo isto para trás de uma vez por todas.

 

A partir de um desafio de uma amiga especial para escrever um texto a partir das palavras seguintes: encarnado, água, caixa, lágrima, olhar, vento, velocidade, castelo, força, mágoa. (isto foi a segunda versão)



quarta-feira, 9 de setembro de 2009



setembro por dentro

tirei-te uma fotografia ao rosto da minha janela, quando caminhavas pela rua na minha direcção, sem me veres. sem o saberes, sem eu o perceber também, senti que eras mais que um retrato a ampliar, a preto e branco, numa moldura grande que viria a pendurar numa parede.

estávamos em setembro, aquele mês em que o tempo ainda nos deixa passar noites na praia a conversar com a luz da marginal por trás, à procura de um beijo num intervalo da conversa, em que se começam a escrever nas folhas de papel dos diários histórias que começam com “era uma vez” que duram anos, histórias de amor que começam com a paixão dos estores para baixo em quartos quentes da respiração ofegante de corpos aos pares, e terminam… ou não, quando o nosso destino o quiser.

quis conhecer-te, imaginei enquanto apertava repetidamente o botão os teus lábios macios e um abraço apertado e quente, num instante vi passar-me pelos olhos -  como se à beira da morte - toda uma vida alternativa, e nasceu-me um sorriso nos lábios. quis-te.

estranha sensação esta. pouco depois deixei a janela, e com memória de peixe, esqueci o que tinha pensado e a sensação de alegria que me deixaste. só ficaste tu. num rolo a revelar dias depois, e onde o teu sorriso e o verde invisível dos teus olhos me faria perguntar em voz alta porque não correra para falar contigo.

 

A partir de um desafio de uma amiga especial para criar uma história a partir das palavras seguintes: peixe, estores, folha, beijo, relógio, amor, paixão, setembro, tempo, direcção, janela, fotografia.



segunda-feira, 7 de setembro de 2009



Yellow

Por vezes temos situações na vida em que sabemos que vamos fazer asneira. Sabemos que temos o painel de controlo na nossa frente cheio de luzes a piscar, algumas delas vermelhas. Vozes ao ouvido dizem-nos:

C U I D A D O !
(as vozes ao ouvido falam em maiúsculas, como é de conhecimento comum)

Quando pensamos racionalmente, dizemos a nós próprios que mais vale cortar o mal pela raiz, nem deixar a planta crescer, porque vai correr mal, seja qual for a situação.

E o que fazemos? O mesmo que fazemos quando se nos depara um semáforo amarelo no trânsito, não temos carros à frente, e estamos já bem perto.

Aceleramos.



domingo, 6 de setembro de 2009



Os Destemperados

São cinco, como uma banda de música. O Rui, o Paulo, o Zé, a Rita e a Paula. Conhecem-se praticamente desde que nasceram, todos no mesmo ano e no mesmo mês. Estudaram juntos, escolheram cursos parecidos, encontraram empregos na mesma área, moram perto uns dos outros, encontram-se todas as semanas e falam todos os dias.

O Rui é alto, o mais sério de todos, olhos muito escuros mas com um sorriso acolhedor. A voz da sabedoria, quando é precisa. O Paulo é atormentado por dentro, com uma longa história de insucessos ao amor, muito inteligente e científico. O Zé é o irrequieto aventureiro, seria o primeiro a comprar bilhete para uma viagem a Marte ou saltar de pára-quedas do Monte Everest, o que viaja mais e sabe mais línguas. A Rita é parecida com ele, loira bonita de olhos muito muito azuis, esperta, gosta de conhecer pessoas e fazer amigos, é extrovertida e adora o mundo. A Paula é a artista culta do grupo. Gosta de escrever, de pintar, de cinema, de exposições, de tocar piano e falar francês, aquela que claro que conhece esse livro e claro que viu esse filme da década de 40 de um realizador desconhecido.

Não são parecidos entre si, não têm os mesmos gostos, os mesmos interesses, a mesma forma de ver o mundo. Mas são almas gémeas, têm uma amizade intemporal, daquelas que todos gostávamos de ter. Há um bocadinho de ti em cada um deles, seria capaz de apostar. Qual deles és tu?





O Oitédio

O Aurélio é a pessoa mais aborrecida do mundo.

Descende de uma linhagem familiar já com oito gerações de pessoas chatas. Quando se encontram entre si, ou com outras pessoas, pouco falam. Ficam cabisbaixos, silenciosos, metidos consigo mesmos, os 0lhos no chão, em longas conversas interiores e secretas com os botões da camisa e as pedras da calçada. Poder-se-ia pensar ser impossível uma família destas existir: como se conhecem? como constroem relações? São perguntas ingénuas. Existe muita gente quase tão aborrecida como Aurélio e os seus antecessores, e têm uma capacidade especial de se reconhecer entre si, de construir momentos que mesmo se aborrecidos têm chamas de magia, e ao longo dos anos isso sempre chegou para foi juntando cada um dos oito casais da família.

Aurélio é especialmente entediante. A selecção natural apurou-lhe a capacidade de ser chato, ao longo dos anos. Um factor genético, certamente. Ao contrário dos pais e dos avós e dos bisavós, no entanto, Aurélio é chato não por falar demenos, mas por falar demais. Fala desde que acorda até que se deita, fala sozinho, fala monocordicamente, sabe tudo sobre tudo, tem opinião sobre tudo, leu tudo, ouviu falar de tudo. Mete conversa com pessoas na rua que não conhece, com a porteira, com o segurança, com o empregado do café, com um antigo colega da escola primária que não via há quase vinte anos, com a pessoa que espera o mesmo autocarro na mesma fila no mesmo dia de inverno em que está a chover e o dia está cinzento. Não há quem o possa ou consiga calar.

O Aurélio é muito inteligente, e já garantiu a propagação dos genes. Encontrou a mulher ideal para si, que fala desde ainda antes de ter acordado, e ainda está a falar já depois de ter adormecido. Dão-se muito bem, mesmo se não se ouvem um ao outro, só falam, e falam, e falam. Sobre seja o que for, seja onde for, seja com quem for.

Eu conheço o Aurélio, o verdadeiro. Na verdade, até conheço muitos Aurélios, e tu também. Qualquer um de nós pode ser um Aurélio. O meu medo, no entanto, é transformar-me num deles.



terça-feira, 1 de setembro de 2009



O meu nome é Romeu, e sofro de Paixão

Juntei-me aos Apaixonados Anónimos há quase 5 anos, mas já não tenho esperanças de melhorar. Só continuo a ir para conhecer pessoas, ouvir as suas estórias, e dar alguns vagos conselhos que serão completamente ignorados, apesar de ser o mais experiente do grupo.

Tudo começou com a Julieta, claro. Penso que já terás ouvido falar dela, aquela coisa trágica em que morríamos os dois envenenados. Não foi bem assim. Estávamos apaixonados, sim, mas só ela é que morreu. Eu fiquei vivo, e amaldiçoado. Amaldiçoado a continuar para sempre pela vida, como um vampiro, a apaixonar-me por uma mulher depois da outra, acreditanto sempre num ilusório para sempre que nunca chegou e nem nunca deve chegar. Não a mim.

Não me confundas com D. Juan. Esse rapaz, aliás meu bom amigo, joga no campo da sedução imediata, dá umas fintas e meia dúzia de charmes inesperados, e rapidamente chega ao branco dos lençóis para um episódio de novela. Eu apaixono-me, entrego-me, seduzo pelo que sinto e não como desporto, construo sonhos vivos e repletos de energia, com princípio meio e sem fim, acredito. E quando o coração me bate no peito com mais força, vem o veneno da minha primeira pôr fim à esperança. Uma vez depois de outra vez depois de outra vez.

Estou cansado, em casa, sentado à mesa, e tenho o cálice com o líquido verde à minha frente, mais uma vez. Vejo-o contra a luz, admiro a transparência e a côr viva que tem, sinto-me seduzido e convidado a seguir pelo caminho mais percorrido. Acabo no entanto, como sempre, por voltar a pô-lo no pequeno frasco, sem sequer muito hesitar.

Prefiro mil vezes viver com paixão, penso, do que não viver de todo.





Go yon, go yon

Quando olhei para para cima, podia apostar que o céu não estava tão alto como ontem. Temos de estar atentos a estas coisas, não nunca podemos confiar. E eu podia jurar – podia mesmo jurar – que o céu ontem não estava tão baixo quanto está hoje. Não estou a falar de núvens, repara, estou mesmo a falar do céu.

Que sensação estranha. Podes pensar que estou a delirar, mas ou estou a crescer, o que é possível mas se notaria na roupa, ou o céu está a descer. Sinto-me apertado, compactado, cada vez mais denso dentro de mim, e isso não é uma boa sensação. Uma espécie de tortura medieval, mas por estranho que pareça, só eu a estou a sentir. Aqueles a quem falo disto respondem que estou a imaginar, riem-se com a piada do que lhes conto, apesar do ar grave que tenho no rosto. Estou preocupado.

Decidi não lhes contar mais. Quando começarem a ter de andar encorcundados pela rua, hão de se lembrar do que lhes disse. O céu está a cair, e mais dia menos dia vamos ter a cabeça nas núvens, depois no fim da atmostera, e acabar a ver estrelas sem conseguir respirar.

Podia jurar que já me está a faltar o ar, penso ao inspirar com sofreguidão e dificuldade… mas onde está a minha estrela?



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