domingo, 25 de julho de 2010



Carolina

A cota está toda arranjada, hoje. Deve ter um encontro ao final do dia. Sentada à minha frente a tentar olhar-me nos olhos, com as mãos em cima das pernas cruzadas, à espera que eu fale, responda, ou faça qualquer tipo de movimento. Não tenho qualquer intenção de a satisfazer.

“É a quinta vez que cá vens, Carolina. Vais continuar sem dizer nada?”

Outra tentativa. A seguir vai perguntar se não me incomoda desperdiçar assim uma hora por semana. Vai recordar-me que é imposição legal e dos meus pais, e apelar-me ao sentimento de culpa. Sim, é uma perda de tempo, completa. Mas não estou aqui por minha vontade, e nada vai mudar isso. É palerma, se acha que lhe vou falar de mim. Quem julga ela que é? E a chamar-me Carolina? Parece de propósito para me irritar.

“Os teus pais disseram-me que começaste a ler muito nova. De que livros gostavas?”

Ok, conseguiste irritar-me. Andaste a cuscar com os meus pais. Para saber de mim. Quem te deu o direito? Começo a sentir-me tensa, posso até ter pestanejado sem querer. Fónix, raios os partam. Sim, mulher, comecei a ler muito nova. Li o Lolita. Queres que te fale disso? De como me tornei amiga dela e me seduziu o poder que tinha sobre o pobre Humbert? Sobre o mundo, até? Pois sim é verdade. E daí vais concluir que foi por isso que acabei aqui neste escritório quente, com pouca luz e cheiro a bafio, sentada muito composta em penitência com os joelhos juntos e a olhar para a parede do outro lado. E até podias ter razão, mas não te vou dar o prazer de o saber.

“Não te vou tratar com uma criança, Carolina. Estás a portar-te como uma adolescente. Igual à maioria dos outros da tua idade com quem falo, todos os dias. Revoltados com a autoridade ou mundo em geral.”, disse a voz com olhos directos e tom de constatação.

Tirou um curso em irritação, de certeza. Tenho de ver o que posso fazer acerca disso. Onde morará? Não, minha amiga, penso comigo mesma, não sou igual aos outros que por aí te entram. E se me irrito é porque me estás a fazer perder tempo. Tenho coisas para fazer lá fora. Hoje apetece-me uma tatuagem. Isso. Um falcão com garras afiadas, por trás do ombro direito, em voo picato. Os cotas vão-se passar, e vai ficar fixe no meu perfil. E se continuas a chatear-me, ponho-te a ti nessas garras, mulherzinha.

“Bom, vamos recomeçar. Eu não tenho nada melhor para fazer, Carolina. E tu achas que tens, mas não podes por minha causa. Sabes porque estás aqui?”

Claro que sei, penso, sem um pestanejar. Deve pensar que sou tola, além de calada. Os meus pais acham que sou anti-social, que não tenho amigos, que passo demasiado tempo a mandar mensagens e na net. Quem os mandou mudar para Almada, não estávamos bem em Lisboa? Também deviam querer que vestisse cor-de-rosinha em vez de preto, ou andasse de saltos altos e não botas. O que têm eles a ver com o que faço? São só os meus pais, e não devo precisar deles muito mais tempo -- já tenho o meu império, que me segue cada curta frase, que controlo por palavras e abreviaturas, e que fará tudo o que eu quiser.

É verdade, a Carolina não tem amigos. Mas para os amigos não sou Carolina. Sou Orange, Lady Orange. E tenho milhares de amigos.

 

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A partir de um desafio de Lady Mary Jane. Elementos a usar: Carolina – para os amigos Lady Orange, Adolescente, Não gosta de saltos altos, Almada, Quer fazer uma tatuagem.



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