segunda-feira, 9 de abril de 2012



Pedra Preta

Uma limpeza. Vieram por entre a neblina ao nascer do dia, vi-os descer o monte com erva verde de inverno, e levaram tudo o que não estava preso ao chão. Mulheres, crianças, velhos, tudo o que tivesse valor. Os homens em idade de lutar já tinham fugido. O meu pai fez-me prometer que não saía do celeiro, que esperasse pelo regresso dele, e desapareceu por entre as árvores da floresta. Levava um farnel às costas, num saco de pano castanho que a minha mãe lhe tinha dado há muitos anos atrás, em dias melhores.

Do alto do celeiro vi tudo o que se passou na aldeia. Sem me mexer, vi a passividade das pessoas, a incredulidade revoltada. Serem levados como cordeiros, à força das armas, a história do homem a repetir-se em pleno século XX. O padre, o cura, o senhor da venda que na semana passada me deixou cair a caixa de pepinos no pé. No hospital engessaram-me e mandaram-me ficar sem me mexer duas semanas. Ao fim do primeiro já tinha assinaturas de todos os amigos, um census da aldeia escrito no gesso.

Olhei o céu, vi a nuvem, branca como uma folha de papel, perfeita e redonda mesmo em cima de nós, espectadora impávida do espectáculo que sob os seus panos se escrevia. Dois tiros levaram a paz ao padeiro e à mulher, pelo atrevimento de defender o forno dos hirsutos de uniforme militar. Assustei-me, soltei um grito mal contido, quando os vi cair. Ele devagar, para a frente e dobrando-se sobre ela própria, ela projectada para trás com violência.

Vieram-me buscar pelos braços, a arrastar pelo chão e quase largado escadas abaixo.

“É um miúdo”, ouvi as vozes lá em cima, por entre pernas e canos de espingarda. “Não consegue andar”. “Pena.”, responderam-lhe. E ouvi o estampido, num cavalo humano.

 

Na noite que caiu depressa ouvi uma voz de mulher a cantar, com aquela melodia tão balcânica que tão bem conheço, suave e fria, e perguntei-me se seria a minha mãe, de quem só lembro umas fotos a preto e branco.



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