sexta-feira, 29 de março de 2013



José e Maria

José sentia a transpiração, que lhe encharcava a camisa com o calor abrasador que vinha de cima e deixava tudo seco e quente ao toque. Dos cabelos escassos e normalmente secos caíam pingos que levantavam pó seco ao tocar o chão, como uma bomba atómica no mar. A sombra que fazia no chão era o local mais agradável de todo o mar de calor em seu redor, de tão quente que lhe subia pelas calças adentro, fazia transpirar as pernas, o aquecia a ferver. Sentia nas mãos os nervos de uma pequena árvore rugosa, morta, que queimava ao toque, e onde não encontrou nada que pôr na boca. José estava molhado por fora, mas seco por dentro, e na boca seca só entravam as gotas salgadas que escorriam do rosto.

A casa estava perto, e sentia no ar um vago cheio a feijões, o almoço que imaginava na boca e saboreava, a água fresca onde queria encher-se e mergulhar o rosto, mas não conseguia abrir os olhos, a luz branca e quente do céu cegava-o, o calor roubou-lhe o caminho de casa. José estava parado, apoiado na pequena árvore, a tentar adivinhar o rumo para Maria.

Na casa quadrada de uma divisão só, como um oasis na terra amarela frinchada por milhas e milhas em todas as direcções, Maria encostava o nariz aos vidros quentes, à espera de José perdido. Beijou-o com os lábios generosos, como se beijando o vidro beijasse a José e a tudo o que estava lá fora, e aquele sinal marcado em cada um dos quatro pontos cardeais o pudesse guiar de volta. Chamou por ele baixinho, na sua voz calma e segura, pediu que não se demorasse, disse que precisava dele, que nunca devia tê-lo deixado sair com aquela idade.

Respirou fundo, deixou húmido o vidro em que tinha acabado de deixar um O, e foi abrir a arca. A tampa chiou, no silêncio ouviu-se com perfeição cristalina a fechadura de metal a bater e ceder. As mãos procuraram o tecido em fibra por baixo de todos os cobertores de lã, as camisolas que lhe picaram a pele há mais de 70 anos, quando brincava nos jardins onde os pés se enterrava com um sploch na neve, as camisas brancas e arejadas com cintura delgada de menina, de quando a grande seca ainda não tinha começado. Lembrava-se de ser branco, de ser fresco, do cheiro a novo que agora tinha sido substituído pelo de poeira e anos acumulados.

Vestiu-o, supreendendo-se por o corpo de 80 ainda caber no vestido do corpo de 20, e por ter deslizado com tanta facilidade. Arrastou os pés descalços pelo chão de madeira morno, sentindo os sulcos entre cada ripa, puxou a cadeira de madeira em frente à mesa, com pratos postos, o mesmo feijão que de tantos anos já lhes sabia a todos os dias, mas que os confortava aos dois, com o cheiro que enchia a casa quadrada de uma divisão só. Esticou a mão para a jarra de água fresca, puxada do furo profundo debaixo da casa, sentiu no frio do vidro as gotas de água gelada que continha, e sentou-se para esperar.

 

 

E quando já não o esperava, e em toda a casa nem o pó se mexia no ar, sentiu o rodar da maçaneta a encher tudo.

 

(proposto pela Sofi)



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