domingo, 21 de fevereiro de 2016



Rapaz, Maria

Espertos foram os que ficaram lá dentro. Quando as balas perdidas começaram a cravar-se nas paredes, a partir os vidros, e a penetrar nos corpos dos incautos, espertos foram os que ficaram lá dentro.

“A Maria-rapaz”, era como me chamavam na escola quando era miúda. Adoptei o nome quando cresci, usava o cabelo curto e vestia como lembrava ao meu pai que se finou na guerra em Flandres dois anos depois de eu nascer. “Sou a Maria Rapaz”, dizia com uma pausa a não deixar espaço à ambiguidade sobre a inexistência do hífen, ao mesmo tempo que tirava as pistolas tapadas pela samarra, e atrás de mim entravam o Diamantino e o Urbano, já com as Tommys apontadas a funcionários e clientes sem discrição ou discriminação, e com meia face coberta por lenços pretos.

Mas a vida andava difícil, tanto para nomes como para cognomes. O governo do Salazar deu à GNR uns jipes com rádios recebidos dos alemães, e tínhamos uma hora se tanto para limpar as caixas de bancos, caixas agrícolas ou CTT, amontoar os cofres de metal em sacos de serapilheira, e sair dali a toda a brida ao volante do Venâncio – que aprendeu a conduzir o Citroën Traction Avant preto que o tio trouxe de França e que foi o primeiro carro que se viu em Brinches. E para mim, se é para fazer, é para fazer bem feito - não deixar uma moeda no fundo de uma gaveta sequer. Mas o tempo não dava para tudo, e a vida andava mesmo difícil.

Em Sobral da Adiça o golpe foi simples, mas não rendeu mais que um punhado de escudos e ainda foi preciso gastar umas balas para afugentar curiosos corajosos. Abalámos pela noite para Puerto Peñas, onde o taberneiro alugava um quarto privado e todos os duvidosos da região se reuniam até o vinho adormecer sobre as mesas com o sol a raiar. Mas nessa manhã não raiaria.

“SOY EL CAPITAN ÁNGEL DE LOS CARABINEROS! SALGAN DE AHÍ CON LOS BRAZOS EN ALTO, CABRONES!”

Nunca tinha visto o Capitão Ángel, nem o seu famoso bigode preto, mas conhecia-lhe a reputação brutal nas fronteiras com Portugal e França, e não se passaram dois minutos para ver da janela do 1º andar - enquanto calçava as botas - uns quantos mal despertos saírem de mãos no ar. Seria a última súplica que fariam. “Es aquel!!!”, disse um dos Carabineros, a apontar para um jovem efeminado, e o grito despoletou os disparos.

Nunca mais vi o Diamantino, o Urbano ou o Venâncio, mas não os imaginava numa prisão espanhola, e os fogachos de luz já voavam também em direcção aos carros policiais. Saltei pelas traseiras, aproveitando para navalhar sem hesitar o pescoço do taberneiro traidor e da sua mulher pequenina que se escondiam na casa da lenha, e desapareci na serra das Peñas para nunca mais ser vista em terras de Portugal y Espanha.


Dizia-se que na América é que a vida andava fácil.



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