Vou escrever em forma de tangente.
escrever em tangente, no entanto, implica a colaboração activa dO Leitor. O Leitor certamente estará informado de que, em matemática, a palavra tangente tem dois significados distintos mas epistemologicamente relacionados: um em geometria, cuja tangente é a reta que em pequenas distâncias funde-se com a circunferência, e o outro em trigonometria é um plano (de inclinação) que tange a superficie de uma esfera.
sendo aqui que a curiosa palavra tange deve ser ententida não pelo seu significado musical (tocar um instrumento), mas seu outro significado, não musical mas muito mais wikiano.
tendo isto como premissa, vou ter de pedir ao leitor para imaginar uma folha repleta de círculos, de variadíssimos diâmetros e cores, desordenadamente colocados na página. para cada um deles, e escolhendo um ponto coloquialmente ao calhas, trace uma recta tangente, por forma a que todas as tangentes se cruzem num e num único ponto de fuga.
pois esse ponto é precisamente a mensagem que quero deixar aqui, sobre estar apaixonado. e os pequenos pedaços de texto que vou deixar a seguir, e que ainda não sei quais são porque não saíram de mim, são todos eles sobre esse ponto. as ligações, no entanto, são tangenciais. e podem nem existir. aí entra a imaginação rica dO Leitor, e o labirinto do borges [1].
a primeira história é sobre as palavras “pedaços de texto”, que usei no parágrafo anterior. algo que detesto em teatro são aqueles momentos auto-masturbatórios [3], sobre o quão fantástico é fazer teatro, representar, o palco da vida, yada yada yada. suspeito até que possa já ter escrito sobre isto no passado. ora para ser muito frango [2], penso o mesmo sobre a escrita. falar de palavras e sobre escrever, glorificando-as, é o mesmo tipo de coisa.
a segunda história é sobre um pato (ou pata), que eu ou a minha irmã tivemos quando éramos gaiatos, na Terra dos Meus Avós. [4] lembro-me de ter sido comprado numa feira em santiais e de andar pelo quintal e pela rua sempre atrás de nós, do tamanho de um palmo, pai ou pais adoptados. como se podia prever, e como estas coisas não têm nunca final feliz, acabou no prato, o pato.
a terceira história é pornográfica, e como tal não a posso contar. chocaria as sensibilidades dOs Leitores atentos e pouco permissivos com a moralebonscostumes. ainda por cima, apetece-me chocolate, por isso não vou mesmo entrar por aí. tem a ver com mamilos como azeitonas de elvas em pornonovelas a preto e branco dos anos setenta.
a quarta história aconteceu quando terminei o curso, e fui com outros colegas a uma reunião sobre a perspectiva de continuar para mestrado, penso que em 1995. o curso tinha muitos alunos à partida, mais de 200, e com tanta gente é impossível conhecer todos. ainda hoje me surpreendo por saber que s ou l ou q foram meus colegas sem deles me lembrar de forma alguma. mas voltando ao passado. estávamos uns quantos à porta antes de entrar para a tal reunião, e encetou-se uma conversa sobre espírito de curso, sobre a pouca gente que aderiu à viagem de final de curso. dei a minha opinião (que seria a de esperar de um introvertímido), e uma miúda algarvia com quem terei trocado 2 ou 3 frases talvez no curso todo respondeu, perspicazmente: “isso és tu, que és um bicho do mato”. acho que nunca mais a voltei a ver, e não fez o mestrado, mas aquele momento foi uma lâmpada.
a quinta e última história, porque na minha folha de papel cavalinho só desenhei 5 bolas, é sobre uma ocasião em que ia na rua com um colegamigo, a caminho do almoço. poucos metros à nossa frente, uma velhotinha caiu, partiram-se-lhe os óculos e cortou-se, havia sangue. o meu colegamigo acorreu a ajudar, não fora nada de grave. eu fiquei gelado, sem me conseguir mexer. só imaginava vidros nos olhos, e a pela espinha subiam e desciam arrepios frios. e não, não me orgulho da reacção. a história é essa, no entanto, e aposto que tens uma dessas para contar, que te revolveu por dentro no mau sentido (como uma chave esquecida num bolso de calças numa máquina de lavar [5]).
agora que já aí tens as cinco histórias, podes olhar para ponto de convergência. nesse ponto tens o que é estar apaixonado, em forma de tangente muito tangente. perder o sono e ficar magoado, querer sem ter (sem querer?), dar e doer, essas coisas todas que me fariam detestar-me se as fosse desenhar aqui a lápis. têm tudo a ver contigo, tu a quem não digo o nome, e por quem estou apaixonado.
não me peças para explicar, quem tem a respostas era o borges e esse já não está cá para falar.
[1] se nunca te disse que o borges é, para mim, um dos maiores escritores que já passou pela humanidade, fica aqui dito para a posterioridade. [2]
[2] depois de inúmeros episódios de correcções pelo Vasto Público a frases intencionais, achei por bem passar a assinalar as utilizações porventura passíveis de causar desorientação aO Leitor.
[3] note-se a figura d’estilo pleonasmática [2], destinada a reforçar o significado.
[4] vai sempre ser A Terra Dos Meus Avós, mesmo quando.
[5] sempre quis usar esta imagem num post. depois de anos e anos, finalmente consegui.