sexta-feira, 17 de dezembro de 2010



Last Night

caTSFicámos à frente da televisão, já não sei se a ver um filme, se a jogar um jogo. Mas adormeceste no sofá ao meu lado, e tive de com carinho te roubar da ronha e levar para o quarto comigo, enquanto protestavas com birra de sono. Fingiste que querias dormir, mas agarrei-te e beijámo-nos e… fizemos amor um com o outro. Com carinho, com paixão, com entrega, uma fusão de corpos e de espíritos, um prazer profundo e único, uma comunhão que me preencheu total e absolutamente e me deixou... feliz.

Adormecemos juntos, agarrados, a respirar no teu pescoço, junto ao teu calor, corpo com corpo, quase só uma pessoa, poucas coisas poderiam ser tão especiais como estes momentos. Se a vida fosse sempre assim todo o planeta seria um sítio muito mais feliz.

E esta foi a nossa última noite juntos.



terça-feira, 14 de dezembro de 2010



fugas

O texto seguinte não está datado. foi encontrado, por assinar, no final de um bloco de folhas quadriculadas. a transcrição é integral e conforme o original.

«Estou cheio de sono e hoje  o dia foi pouco produtivo. Hoje tenho de me deitar cedo, não ficar a jogar até tarde com pensamentos idiotas na cabeça. Felizmente ela não me contactou mais. Cairei na real talvez. Ainda bem? A quem minto eu?

Não estou para isto. É amizade, é amizade. Fónix. Não gosto de coisas não claras, não gosto – detesto – sentir-me assim cheio de altos e baixos. É um suplício, está a fazer-me mal e não quero isto. O meu cérebro conspira contra mim e isto é uma tensão que não me agrada. Não vou insistir, e sair graciosamente. Isto não, isto não, isto não.

Não me podes desiludir. Já me desiludiste. Não esperar nada. Isto é a chave. Não esperar nada. Nada. Não esperar. Nada. Não esperar nada. Esperar a conversa “depois de jantar”
não esperar nada
        não esperar nada
                   não esperar nada
                            quase que dá vontade de que argentina passe depressa, para poder ter toda a liberdade de fazer o que me dá na real gana. E agora não posso fazer isso. Não posso estar sempre disponível e não ter nada de parecido. Acabou a disponibilidade universal, acabou o Verão. Neste fim-de-semana. Na 6ªf.»

O texto infelizmente não está datado, mas assume-se que seja de uma data anterior à viagem à Argentina, em que perante alguns motivos de insatisfação, o autor anónimo chega a exprimir vontade de que essa passe depressa, para que perante o descontentamento que sente, possa agir.

Não temos mais informações.



segunda-feira, 13 de dezembro de 2010



In Pain

(excerto do filme “Simple Men” de Hal Hartley)

«Just be quiet and go to sleep.
  
- I can't sleep.
- Why not?
  
I'm in pain.
  
- What?
- I got a broken heart, man.
  
- Bullshit.
- I do.
  
What happened?
  
I was set up.
Double-crossed.
Betrayed by the woman i love.
  
- Who, mom?
- No!
  
- Vera.
- Who's vera?
  
I don't want to talk about it.
  
- Suit yourself.
- You wanna see a picture of her?
  
- Wow, she's pretty.
- I would've done anything for her.
  
- Sorry.
- I just can't understand it.
  
- You'll get over it.
- No, dennis, i will not get over it.
  
- Yes, you will.
- Dennis, i love this woman.
  
- You've loved other women.
- Not like vera.
  
- Vera was special.
- Believe me, you'll get over it.
  
Yeah, you're right.
  
Tomorrow...
i'll get over it tomorrow.
  
- Now go to sleep.
- But i'm not gonna fall in love anymore.
  
- Fine.
- Women don't want you to love them.
  
Tomorrow...
the first good looking woman i see...
i'm not gonna fall in love with her.
That will show her.
Yeah. The first good looking
blond woman i see...
i'm going to make her
fall in love with me.
I'll do everything right.
Be a little aloof at first.
Mysterious...
seem sort of thoughtful, deep.
But possibly a bit dangerous, too.
Flatter her in little ways
but be modest myself.
They all fall for that shit.
Make her fall hopelessly
in love with me.
Yep. Mysterious,
thoughtful, deep, but modest.
Then i'm going to fuck her.
But i'm not going
to care about her.
To me she's going to be
another piece of ass.
Somebody else's little girl
who i'm going to treat like dirt
and make her beg for it, too.
I'm just going to use her up.
Have my way with her.
Like a little toy,
a little plaything.
And when i'm done...
i'm just going to throw her away.  
  
Are you through?

I haven't even begun yet.
  
Go to sleep.
  
I can't sleep. I'm in pain.»

Tirado daqui. Este diálogo, na forma como o irmão mais velho diz “I’m in pain”, sempre me tocou profundamente. Para quem não viu o filme, ele acaba por conhecer uma mulher, que o acha misterioso e etc.

E apaixona-se por ela.



domingo, 12 de dezembro de 2010



Comunicado Oficial da Presidência da Pessoa João

Concidadãos,

depois de aturada conversação e avaliação das circunstâncias que tão recentemente afligiram o nosso rectangular ser, gostaríamos de aproveitar a oportunidade para clarificar junto de todos um facto de que apenas há pouco tomámos conhecimento racional.

O motivo para o atraso na revelação deve-se à complexidade do processo auto-reflexivo em si, que c0m frequência levou este comité para observações circulares e argumentos e memórias secundárias, que tornaram impossível uma objectividade que apenas circunstâncias que poderemos classificar de extraordinárias permitiram revelar.

O facto em causa refere-se como não podia deixar de ser ao recente encerramento da relação com a Pessoa Que Não Vamos Nomear, nas circunstâncias que são por todos e pelos demais desconhecidas. Ao contrário do que até agora veio sendo vinculado na comunicação social, wikileaks, e inclusive comunicados anteriores à imprensa, sobre a reduzida dimensão do que a Pessoa João pretendia da Pessoa Que Não Vamos Nomear, o que a Pessoa João pretendia da Pessoa Que Não Vamos Nomear não era efectivamente pouco ou limitado.

Não sendo obviamente algo que fosse pretendido para agora, para o já, e serem de esperar anos e meses de maturação da ideia e de avaliação mútua das duas Pessoas envolvidas (e respectivos cidadãos), que como é de todos conhecidos têm diferenças que seria necessário avaliar e compatibilizar, o objectivo claro da Pessoa João era efectivamente forjar laços com a Pessoa Que Não Vamos Nomear de uma natureza permanente e duradoura, que teriam de ser construídos meticulosamente com base em afectos e agradabilidades mútuas mas construtivas e progressivas, e que porventura passado algum tempo resultariam em uma ou duas Pessoas Júniores e, se fosse vontade de ambos, numa união de natureza civil-matrimonial.

Desta forma desfeita falta de informação, e cientes de que o presente esclarecimento em nada altera os eventos já colocados em movimento, cumpre-nos lamentar a demora no processo reflexivo que permitiu a esta Pessoa chegar a esta conclusão, e a consequente demora na informação aos cidadãos, e esperar que em eventuais processos futuros esta clarificação e compreensão seja atingida de forma atempada.

Lamentando o sucedido,

P’la Presidência da Pessoa João,

-joão



quarta-feira, 8 de dezembro de 2010



Maldito Orgulho

Acordou devagar como sempre, entorpecido de uma noite longa, com a sensação de que alguma coisa estava errado. Já se estava a levantar quando se lembrou de que ela já não estava na sua vida.

Romperam violentamente na noite anterior, rasgaram tudo o que os tinha juntado, sem olhar para trás ou tentar perceber porquê, não houve sanidade nem violência, mas uma calma fria e cortante e incompreensível e distante, como se nem fossem eles que estivessem ali, como se não quisessem ou pudessem dar-se ao luxo de admitir que se calhar até gostavam um do outro e que as coisas podiam até resultar, porque isso era fraqueza.

Romperam violentamente, e sabia que não se iam voltar a ver. Podiam pensar um no outro, podiam querer voltar a estar juntos, de certeza que se iam perguntar o que raios lhes tinha acontecido, mas não iam mexer-se para inverter fosse o que fosse, e as linhas iam divergir inevitavelmente. Ambos conheciam as regras do jogo, jogavam-no há demasiado tempo, e sabiam dos flancos que só se expõem uma, no máximo duas vezes na vida. Não o iam fazer outra vez.

Mas quando se joga à defesa não se marca, e o maldito orgulho não os deixou sair de onde estavam, cada um por si, a retomar a sua vida normal. 85% mais pobres, que estupidez tão trágica.

Não foi capaz de sair da cama, nesse dia.



(ps: não foi orgulho. foi não quererem a mesma coisa. mas ele escreveu isto antes de tudo acontecer)



domingo, 25 de julho de 2010



Carolina

A cota está toda arranjada, hoje. Deve ter um encontro ao final do dia. Sentada à minha frente a tentar olhar-me nos olhos, com as mãos em cima das pernas cruzadas, à espera que eu fale, responda, ou faça qualquer tipo de movimento. Não tenho qualquer intenção de a satisfazer.

“É a quinta vez que cá vens, Carolina. Vais continuar sem dizer nada?”

Outra tentativa. A seguir vai perguntar se não me incomoda desperdiçar assim uma hora por semana. Vai recordar-me que é imposição legal e dos meus pais, e apelar-me ao sentimento de culpa. Sim, é uma perda de tempo, completa. Mas não estou aqui por minha vontade, e nada vai mudar isso. É palerma, se acha que lhe vou falar de mim. Quem julga ela que é? E a chamar-me Carolina? Parece de propósito para me irritar.

“Os teus pais disseram-me que começaste a ler muito nova. De que livros gostavas?”

Ok, conseguiste irritar-me. Andaste a cuscar com os meus pais. Para saber de mim. Quem te deu o direito? Começo a sentir-me tensa, posso até ter pestanejado sem querer. Fónix, raios os partam. Sim, mulher, comecei a ler muito nova. Li o Lolita. Queres que te fale disso? De como me tornei amiga dela e me seduziu o poder que tinha sobre o pobre Humbert? Sobre o mundo, até? Pois sim é verdade. E daí vais concluir que foi por isso que acabei aqui neste escritório quente, com pouca luz e cheiro a bafio, sentada muito composta em penitência com os joelhos juntos e a olhar para a parede do outro lado. E até podias ter razão, mas não te vou dar o prazer de o saber.

“Não te vou tratar com uma criança, Carolina. Estás a portar-te como uma adolescente. Igual à maioria dos outros da tua idade com quem falo, todos os dias. Revoltados com a autoridade ou mundo em geral.”, disse a voz com olhos directos e tom de constatação.

Tirou um curso em irritação, de certeza. Tenho de ver o que posso fazer acerca disso. Onde morará? Não, minha amiga, penso comigo mesma, não sou igual aos outros que por aí te entram. E se me irrito é porque me estás a fazer perder tempo. Tenho coisas para fazer lá fora. Hoje apetece-me uma tatuagem. Isso. Um falcão com garras afiadas, por trás do ombro direito, em voo picato. Os cotas vão-se passar, e vai ficar fixe no meu perfil. E se continuas a chatear-me, ponho-te a ti nessas garras, mulherzinha.

“Bom, vamos recomeçar. Eu não tenho nada melhor para fazer, Carolina. E tu achas que tens, mas não podes por minha causa. Sabes porque estás aqui?”

Claro que sei, penso, sem um pestanejar. Deve pensar que sou tola, além de calada. Os meus pais acham que sou anti-social, que não tenho amigos, que passo demasiado tempo a mandar mensagens e na net. Quem os mandou mudar para Almada, não estávamos bem em Lisboa? Também deviam querer que vestisse cor-de-rosinha em vez de preto, ou andasse de saltos altos e não botas. O que têm eles a ver com o que faço? São só os meus pais, e não devo precisar deles muito mais tempo -- já tenho o meu império, que me segue cada curta frase, que controlo por palavras e abreviaturas, e que fará tudo o que eu quiser.

É verdade, a Carolina não tem amigos. Mas para os amigos não sou Carolina. Sou Orange, Lady Orange. E tenho milhares de amigos.

 

--

A partir de um desafio de Lady Mary Jane. Elementos a usar: Carolina – para os amigos Lady Orange, Adolescente, Não gosta de saltos altos, Almada, Quer fazer uma tatuagem.



domingo, 9 de maio de 2010



Coração de Borracha

Isto aconteceu há mais de 20 anos, e fala de uma miúda chamada Susana, nos seus 12 anos talvez. Uma das minhas primeiras paixões.

Não nos falávamos, e só te conhecia de vista apesar de estarmos na mesma turma. Tinhas um olhar distante e dono de ti. Não eras linda, mas tinhas alguma coisa especial que me chamou atenção. Podia jurar que tinhas olhos cinzentos, mas posso estar enganado.

Não me lembro do teu rosto ou do teu olhar, e não te reconheceria na rua. Também não te falaria, se reconhecesse. E não te ia contar a história do coração de borracha.

 

Era Vermelho, cabia na palma da mão, e devia dizer “I Love You” em letras brancas. Deixei-to em segredo dentro da mochila num intervalo entre duas aulas, junto com uma mensagem de amor. Naquela altura eram moda as pequenas borrachas com formas e mensagens, e havia quem as coleccionasse. Miúdas.

Não sei bem como, mas acabou por voltar às minhas mãos, e nunca nos falámos sequer. Talvez tenha aparecido, devolvida num intervalo, na minha mochila.

Quando o ano acabou e mudei de escola, vi-te de mão dada com um amigo que já vestia só de preto, ouviam-se os Art Company ao fundo a cantar o teu nome e rir-se de mim.

Já a pequena borracha vermelha em forma de coração, essa seguiu-me muitos anos.



quarta-feira, 17 de março de 2010



Ruivas e Ruivos, Respectivamente

Antigamente quando as gloriosas férias de Verão de 3 meses se prolongavam para Setembro na Terra dos Meus Avós (2ª porta a seguir ao Paraíso), havia “debulhadas” rituais, juntavam-se as gentes da aldeia numa eira para tirar as camisas às maçarocas de milho. Sentados em círculo em volta da pilha, 10-15 pessoas contavam histórias uns aos outros, e bebiam anis e outros licores em garrafas que faziam a roda.

Havia três tipos de maçarocas diferentes. As normais, mais comuns, para fazer farinha e dar aos animais. Outras, finas e raras como caninos, eram o milho de pipocas, e guardavam-se para esse fim. As últimas eram ruivas, pouco mais claras que vinho tinto, e desbloqueavam uma espécie de bate-pé para os miúdos. Quem descamisasse uma destas, podia pedir um beijo a alguém à volta da pilha.

Acabei de encontrar um pelo de barba ruivo. A quem vou pedir um beijo?



quarta-feira, 3 de março de 2010



Valsa no Fim do Tempo

Foi uma despedida, aquele dia. Quando acordei de manhã, sabia que ia ser um dia de despedida. Alguma coisa no ar parecia segredar-mo. Não acredito em premonições, mas tinha aquela sensação de que alguma coisa ia acontecer. Sentia-o todos os dias, normalmente ainda de manhã, normalmente pouco depois de acordar, normalmente para o esquecer pouco depois.

Mas naquele dia aconteceu mesmo.

Actualmente há quem comemore o fim de um casamento com uma festa de despedida de casamento. Há quem não as compreenda, por um fim de casamento ser um sinal de fracasso e de fim de amor. Há quem encare como mudança, e sinta que precisamente por ser mudança e recomeço, deva ser comemorada.

No livro mais conhecido do Heinlein, "Estranho numa terra estranha", há uma festa quando alguém morre. Como forma de ficar com um pouco dessa pessoa em si, pode até comer-se um pedaço dela. Lembra o horrendo final do "Bébé de Maçon" no filme do Peter Greenaway.

Conversámos, frente a frente, quando chegámos a casa ao final do dia. Tu e eu, os teus olhos e os meus olhos. Não foram precisas muitas palavras. Terminámos com um "Está decidido, então". Saíste de casa para ir ter com uma amiga, eu fiquei a fitar a imensidão de pormenores do tecto branco natureza.

Marcámos a festa para daí a um mês, quando já estavam os papéis assinados, já as famílias sabiam e se conformaram, já os amigos sabiam e tinham tomado lados. Havia mais que duas pessoas a separar-se, quando aquele papel fosse desassinado em triplicado.

Escolhemos um restaurante bar conhecido, que alugámos só para nós. Escolhemos a ementa os dois, eu os pratos de carne e ela os pratos de vegetais. Decidimos quem ficava em cada mesa e a sua disposição na sala, escolhemos nomes de filmes e livros para dar às mesas, fizemos os convites fashion numa gráfica. Contratámos um DJ, que ia passar à vez as músicas de um e as músicas de outro, e terminar com uma valsa para ser dançada a sós pelos dois recém-separados.

A festa foi um sucesso. Mais de duzentas pessoas acabaram por aparecer, algumas depois de muita insistência. Houve cantoria, divorciado e divorciada lançados ao ar à força de braços, o atirar do bouquet à sorte de uma das casadas da sala. A minha prima já andava insatisfeita, quando apanhou as violetas veio-lhe um sorriso ao rosto.

Fechámos como havíamos aberto. A dançar a valsa que escolhemos, só os dois na pista, rodeados pelos convidados, e ao som das palmas quando terminámos, demos o nosso último beijo nos lábios.



sábado, 27 de fevereiro de 2010



Eu faço os dias

Já não tenho paciência para os aturar. Tanto de dia, como de noite, 90% dos meus clientes são homens. Estou FAR-TI-NHA.

Partilho um táxi com a Gisela, da Guarda. O patrão acha que ter mulheres ao volante é bom para o negócio.  Eu faço os dias, ela as noites. No bar, é ao contrário. Ela faz os dias, eu as noites. Os homens de Fernão Ferro sempre preferiram as roliças na passerelle, e babam-se quando me vêm tirar peça de roupa depois de peça de roupa. Pena serem um tesos, se não fossem já não andava nisto.

Há dias reparei num que todas as noites aparecia à minha hora, se sentava bem à minha frente, e ficava a beber um whiskey e olhar-me com ar tímido. Dias a fio disto chamaram-me a atenção para ele. Doidos destes já os conheço bem. Acabou por me pedir uma dança, e balbuciou que se chamava José e me admirava muito, queria casar comigo, amava-me e achava-me a mulher mais bonita do mundo. Não lhe dei resposta, e despachei o serviço que me ia pagar a revisão do carro na garagem.

Hoje chamaram-me para um serviço no Barreiro, e quando chego entra-me no carro o José, de mão dada com uma mulherzinha baixa. Queriam ir para o aeroporto. Vi-o ficar vermelho que nem um chouriço quando me viu, e quase me ria para dentro.

Deixei-os na Portela e parei na estação de serviço para beber um café e fumar um cigarro.

“Malandros. São todos uns malandros.”, pensei ao cuspir a beata e voltar para o carro.

 

(este texto foi o exercício final do curso de escrita de viagens, um desafio de escrita livre, com base num conjunto de elementos fornecido por um colega: taxista de dia – Ernestina e stripper à noite – Priscila; o texto devia incluir ainda uma garagem, uma bomba de gasolina, um copo de whiskey, e ser passado em Fernão Ferro). O colega em causa chama-se José… (nota: pseudónimo)].



quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010



Vermelho da cor de chouriço

Qual foi o meu melhor pôr-do-sol? Lembro-me de mais nasceres do sol do que de pôres-do-sol. O que não faz sentido, sabes que sou noctívago. Um de cada? Tenho de pensar. Lembro-me de um pôr-do-sol em Dubrovnik, pouco depois de chegar à cidade. Não foi especialmente bonito, e o céu não ficou vermelho da cor de chouriço, mas lembro-me desse, e que havia o brilho do sol no mar, daqueles que nunca ficam bem nas fotografias. Nascer do sol lembro-me de um nos Açores, em São Miguel. Passei a noite aninhado no carro, desconfortável e tapado com um saco-cama, para ver o sol a nascer na Ponta da Madrugada. Hem? Como foi? Estava nublado, não vi nada. Que pôr-do-sol gostava mais de ver contigo? Só me fazes perguntas difíceis, ainda para mais a esta hora da manhã, amor. Deixa pensar. No Pólo Norte, talvez. Quando o sol se põe por seis meses. Queixam-se os vinte e nove de fevereiristas de barriga cheia - lá em cima, só há um dia por ano. Sabes que os Inuit acreditam que se cantarmos ou assobiarmos para a aurora boreal, ela nos leva para o outro mundo, ou mais prosaicamente vem e nos corta o pescoço? Ainda hoje contam a estória às crianças. Já não chegava o medo do escuro, que começa com o pôr-do-sol.

Vamos?

[viagens… um texto sobre o pôr-do-sol]





Par

Deram-me os dois pauzinhos num restaurante chinês no Soho em Londres, para assinalar os 20 anos de existência do local. Eram todos diferentes uns dos outros, e os que escolhi são pretos e decorados com motivos simétricos em branco no topo, com uma pequena bolsa de tecido bordeux a mantê-los juntos. O final da refeição trouxe também o obrigatório bolo chinês, que dizia: “When you find the other pair, you will have found your pair”. Pareceu-me enigmático já na altura, e provavelmente uma tradução errada.

Isto foi há quase 3 anos, e desde aí andei sempre com os eles.

 

Conheci-te ontem, numa conferência a que ambos viémos. Simpatizámos um com o outro, e combinámos um jantar oriental na ChinaTown de Seattle. Caminhámos juntos do Hotel, escolhemos um restaurante pela cor do néon sobre a porta, entrámos e sentámo-nos. Escolhemos na ementa o 37 e o 42, e pedimos duas Tsin-Tao para acompanhar a conversa.

Quando veio a comida, a fumegar numa chapa quente, vi-te tirar da mala – como que em câmara lenta - uma pequena bolsa de tecido bordeux que mantinha juntos dois pauzinhos chineses, pretos e decorados com motivos simétricos em branco no topo.

Respirei fundo, irrequieto por dentro e nervoso demais para falar, e tirei os meus do bolso do casaco. Os pares eram idênticos ao mínimo pormenor.

 

[inspirado em… dois pauzinhos chineses, pretos e decorados com motivos simétricos em branco no topo, mantidos juntos por uma pequena bolsa bordeux]



sábado, 6 de fevereiro de 2010



Heróis do Bar

«Depois de rodadas consecutivas de margaritas, “Pablo y Sus Muchachas” – assim auto-denominadas ao fim de 4 dias no México – não tinham como não “borrachos”. O pior era que, na mesa ao lado, uns mexicanos puros com ar de poucos amigos estavam igualmente “borrachos”…»

… os tons de voz exaltavam-se com o avançar da noite, e começaram a picar-se os locais e os estrangeiros, com desafios indirectos de um lado em espanhol e em portinhol do outro.

O Bar estava cheio, o ambiente denso e com fumo, um barman de pescoço curto atrás de um comprido balcão de madeira servia impávida e eficazmente. Quatro grandes televisões debitavam decibéis e desporto para quem o quisesse ver.

Pablo, a vedeta da banda portuguesa, não aguentou a tensão no ar, e levantou-se com ar solene. “Muchachos, bamos a cantar la gloria de Portugal!” As “muchachas”, que por cá seriam conhecidos por João, Rui e Zé, levantaram-se também em volta da mesa, de copo na mão e a limpar a garganta.

“Heróis do maaaaaar…” É difícil, cantar o hino em ritmo mariachi.

O bar ficou em silêncio. Curiosamente, não hostil, mas com respeito. Quando a atrapalhada cantoria terminou, os outros presentes, da mesa ao lado e não só, replicaram solenemente com o hino mexicano.

Estavam feitas as pazes, entre gargalhadas e brindes. Pouco depois, começava o Portugal-México do Mundial. O México perdeu. Mas ninguém se importou muito, já eram amigos.

 

[Exercício do curso de escrita de viagens: completar, em 10 linhas (… que excedi claramente), a frase inicial entre aspas]



quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010



Cidades às Escuras

Dia 11 de Março de 1999, Rio de Janeiro. Estava de férias num dos hotéis virados para a praia de Copacabana, no 44º andar. O dia pacífico tinha incluído passeios, praia e frequentes “Ois?” perante o nosso português rápido. Preparavamo-nos para sair para jantar quando a luz se apagou.

O interruptor não funcionava. No corredor, escuridão total. Tentámos ligar para a recepção, mas não havia som no telefone. Faltar a luz num hotel é incomum, pensei. Reparámos depois que lá fora também não havia luz. Toda a praia, todos os prédios, a iluminação na rua, o horizonte, tudo escuro. As únicas luzes eram de alguns poucos carros na avenida, também eles tão devagar que se diriam surpresos.

No dia seguinte, soubemos que tinha sido o maior Apagão do Brasil, e que 70% do país tinha ficado às escuras.

Acabámos a jantar barras de cereais e chocolates no calor da noite, sem vontade de descer as escadas, a ver a lua no céu e no mar e os pirilampos na estrada. Parecia que estávamos sozinhos no mundo.

 

[Outro exercício do curso de escrita de viagens… um micro-conto verídico com menos de 1000 caracteres]



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010



Ganharam. Mas estavam a jogar em casa

Estou no Tarrafal, em Cabo Verde, com o Bruno. Está calor, mas não tanto quente que nos incomode, dois portugueses numa viagem de mergulho. As casas são baixas, as cores esbatidas e gastas fazem lembrar o Alentejo no fim do Verão, o chão é de quadrados de pedra, são poucas as árvores e o verde.

Nada disto é turístico, e somos dos poucos estrangeiros na vila. O “resort” tem um guarda armado com espingarda colonial e dois cães patuscos como ajudantes, e arame farpado em volta, por causa dos “roubos que havia antigamente”, como me disseram, em referência ao período pós-independência. Os chalés luxuosos são feitos em cimento armado por pintar, as camas de pinho. Os dois quartos estão decorados com imagens de santos, paredes verde-claro, tule nas janelas, e uma televisão minúscula - em que o Bruno quase não consegue ver o Benfica - completa o quadro.

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O dia começou bem cedo, antes do sol nascer devagar sobre a Baía do Tarrafal. Saímos para um  pequeno-almoço numa sala circular parca em iguarias e delicadezas de conforto ocidental, mas amigável e hospitaleira. Cinco ou seis pessoas faziam-nos companhia no fim do mundo. Em algumas das janelas havia macacos a espreitar atentamente, e só percebi a razão  quando um deles entrou a correr pela sala, num ápice agarrou duas bananas, e correu de volta para a porta. Um crime imperfeito, mas eficaz.

Ao episódio cómico matinal seguiu-se um mergulho. Fomos guiados pelo Carlitos por entre o coral amarelo, com o Zezinho a ficar no barco por segurança. Os dez metros de visibilidade não deixaram que fosse um mergulho perfeito, e o ar que respirávamos sabia a óleo, mas estas dificuldades foram compensadas quando o meu parceiro inusitadamente arpoou um belo peixe prateado que trouxémos para cima. Foi directo para uma panela quando literalmente e com algazarra invadimos a cozinha do Restaurante da lindíssima Ni, onde íamos todos os dias comer o melhor bife de atum do mundo. Cabo-verdeana e casada com um italiano, seduziu-nos com os pratos e com a beleza. Não tenho adjectivos que cheguem para descrever a refeição, que acabámos por partilhar com os donos da casa, mas deixou-nos a todos um sorriso nos lábios e nas barrigas.

Quando saímos a tarde já ia a meio, e demos uma volta pelo mercado. Numa das ruas ouvimos o matraquear familiar de bolas de madeira contra bonecos de metal. Seis rapazes em volta de uma mesa de matrecos entretiam a tarde domingueira com o mais adequado dos desportos. A mesa é abaulada, as bolas quase pretas, e as pernas desiguais, mas nada disso importava. Os jogos são à melhor de dois, com a equipa que perde a sair de jogo. Muita dinâmica e vivacidade. Acabámos por desafiar os dois campeões a jogar uma partida connosco, um Cabo Verde-Portugal a puxar pelos ferros e chutar com força. Três moedas depois, e com alguma transpiração na testa e nas mãos, concedemos uma vitória renhida num jogo divertido e animado.

Ganharam. Mas estavam a jogar em casa.

[Outro exercício do curso de escrita de viagens: uma crónica (verdadeira)]



terça-feira, 19 de janeiro de 2010



O miúdo e o Mar

“Samuel. Sou o Samuel.”

Foram as primeiras e únicas palavras que lhe ouvi toda a semana, ao leme do pequeno barco de pesca. Não parecia ter 14 anos sequer, um sorriso maroto nos lábios, e muito pouco português.

Tinha ido a Cabo Verde para conhecer o fundo do Mar, mergulhar em condições artesanais em águas maravilhosas e muito pouco exploradas. Ver tubarões. O nosso guia e e dono do barco, o Carlitos, era pescador com arpão sempre que não tinha clientes europeus, o que era aliás raro.

Enquanto mergulhava, o Samuel ficava à superfície a tomar conta do barco, com aquele ar simples e a pele negra brilhante ao Sol, o mar calmo e deserto a reflectir o céu.

 

Voltei lá um ano depois, e reencontrei o Carlitos, agora sozinho com o seu barco. Perguntei pelo Samuel. Disse-me que tinha ido trabalhar para a cidade. Que tinha mulher e dois filhos para sustentar. Que tinha deixado o Mar.

 

 

[2º exercício do curso de escrita de viagens; história quase verídica; hei-de postar aqui uma foto do “Samuel”]



quinta-feira, 7 de janeiro de 2010



Serenada à Chuva

O dia estava seco, o céu azul cheio de sol e sem uma nuvem sequer. Debaixo de nós os dois já tinham passado 400 quilómetros de terra vermelha, sem se ver vivalma. É aborrecido conduzir no deserto, a única companhia lá fora os lagartos à beira da estrada e os sinais a avisar para ter cuidado com os cangurus.

Era fácil conduzir no lado errado da estrada quando não se via ninguém, e a minha companheira pediu para experimentar. Parei, trocámos de lugar com o calor a voar do chão , e recomeçámos o caminho, ainda a 50 quilómetros do parque onde iríamos passar a noite.

Não andámos cem metros sequer – juro – até o céu se encher de nuvens cinzentas muito escuro, e gotas grossas esconderem a estrada à nossa frente.

Acabámos por parar, debaixo da chuva torrencial, sem conseguir ver nada, a olhar lá para fora calmamente e sem palavras.

Só a mim, pensei a sorrir: vir apanhar isto no coração do deserto vermelho. É outra história para contar.

[1º exercício do curso de escrita de viagens; história verídica]



sábado, 2 de janeiro de 2010



dois mil e 10

diz o filme que dois mil e dez é o ano em que fazemos contacto. com o quê, e com quem? não sei dizer. se já estiveram por cá, será refazer o contacto. mas temos tanto medo do desconhecido, deve ser por isso que acabamos sempre por optar por soluções agressivas. aparecem e tufas, lá vai disto. não somos capazes de fazer de outra forma, está-nos nos genes (nas jeans?).

entrei em 2010 na melhor das companhias, rodeado de amigos e pessoas especiais. além de divertido, tive oportunidade de exercitar o meu recente interesse em contar histórias. contei duas, a do rei Salomão e o seu anel mágico, e a da mulher 100% perfeita, do Murakami. já as postei às duas neste blogue. as outras três li-as, e foram dois geniais textos do 1º livro de crónicas do Lobo Antunes (“os meus domingos” e “as pessoas crescidas”) e um conto do Rubem Fonseca do livro “Os Prisioneiros”, chamado “currivulum vitae”. é o nascer de um repertório!!! :-) Acabámos a noite a repetir exercícios do curso de contadores de histórias que fiz, foi muito divertido.

adoro estórias. e gosto de ouvir e de contar.

comprei há pouco um livro de textos do Freud. num dos primeiros, a defender a disciplina emergente (psicanálise), ele escreve o seguinte: “By words one person can make another blissfully happy or drive him to despair, by words the teacher conveys his knowledge to his pupils, by words the orator carries his audience with him and determines their judgments and decisions. Words provoke affects and are in general the means of mutual influence among men.” Em tempos pensei em estudar psicologia. Agora já não, mas continua a interessar-me, por vários motivos. E estas palavras dele são sabedoria pura.

e que 2010 seja o ano em que fazemos contacto.

ps: apetece-me lasanha.



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