sexta-feira, 23 de outubro de 2009



Duas Bocas

Diz quem afirma em tempos tê-los conhecido, que já foram pessoas, bastante normais até. Com as suas vidas, estudos, amigos, trabalho, viagens. Dizem que têm pena de hoje os ver assim, e alguns até dizem ter saudades. Outros, talvez menos amigos que os anteriores, comentam ironicamente que pela boca morre o peixe, o que tem meia verdade, no caso em causa.

Quando se conheceram e morderam o anzol, foi um beijo instantâneo de cola, não puderam nem quiseram largar mais os lábios um do outro.

O homem que ensinou a humanidade a grokar dizia que quando beijava, se concentrava integralmente nesse beijo, esquecia tudo o que se passava lá fora, todas as distrações, ruídos, pensamentos, pessoas, o mundo era o beijo que estava a partilhar.

Os lábios, macios, encaixaram uns nos outros como peças de puzzle, as bocas, os dentes, as línguas, primeiro numa surpresa de descoberta, na urgência inquieta do desejo, no conforto suave de uma noite de conversa num bar com música, numa noite à frente da lareira.

Não era suposto acontecer, e nenhum dos dois o esperava. Conta quem viu que ficaram presos ao primeiro beijo, unidos pelos lábios, pelas bocas, que se comeram um ao outro, consumidos por uma paixão insensata e um prazer sem portas.

Conta quem os viu pela última vez, há uns meses, que os lábios continuavam colados, e que no que restava daquelas bocas se viam enormes sorrisos felizes.



domingo, 11 de outubro de 2009



três e meia da manhã

Há acontecimentos da nossa vida que nos definem, e que marcam tudo aquilo que virá a seguir. Tive um desses acontecimentos na minha vida, passam hoje 40 anos exactos dessa noite.

Estava acordado no escuro do quarto. Ao meu lado na cama dormia a mulher com quem casei por amor, por amizade, por empatia e companheirismo, pelo humor. Respirava baixinho, virada para o outro lado da cama. Eu não conseguia dormir. Algum tempo atrás envolvera-me com outra mulher, e o espaço que isso ocupava tinha crescido em mim aos poucos.

Por favor não me julgues, não é o teu papel, nem tens legitimidade para isso. Se queres ler, lê. Se não queres, estás no teu direito.

Não sabia o que fazer. De um lado a culpa, a mentira, o que sentia ser amor. Do outro a alegria, a paixão, a inteligência. A aventura e o proibido. Desenhei um mapa das opções, tabelei prós e contras, simulei em sonhos acordados o ficar e o partir, para ver se me ajudava. Falei com os amigos mais próximos, ouvi - ou não - o que tinham a dizer. Nunca seria uma opção deles.

Levantei-me em silêncio, fui sentar-me na sala. O despertador no quarto marcava 3 e meia, e lá fora estava uma noite agradável de Verão, os candeeiros a pontilhar a rua de amarelo.

A culpa era toda minha. Somos responsáveis pelos nossos actos, não é o que se diz sempre? Cá se fazem cá se pagam, e outros ditados assim. Eu sei. Meti-me no buraco, agora tinha de sair dele, eu sozinho.

Incapaz de decidir, incapaz de tomar uma decisão quer racional quer emocional, atirei uma moeda ao ar, na escuridão quase completa da sala. Olhei para a face que saiu, depois para a rua escura lá fora, e pensei "Está feito".

Passam hoje 40 anos exactos dessa noite. E a decisão que tomei, foi a decisão errada.


Inspirado vagamente no que me recordo do Intimacy, do Hanif Kureishi, e na música Witches, dos Cowboy Junkies.



sábado, 3 de outubro de 2009



Crónica de Um Beijo Anunciado

Talvez estivesse escrito. Ou talvez tenha ficado escrito porque o estou a escrever agora.

O teu nome não o vou dizer, como não vou dizer o meu. Ambos sabíamos estar destinados a ser amigos, não amantes. A não deixar nos livros de história um do outro mais que algumas linhas, mesmo sem sabermos ainda quantas. Não há neste texto nem uma Inês nem um Pedro.

Cruzámo-nos por acaso, como tantos todos os dias. Estranhamente sem jogos, de cartas na mesa, a trocar só palavras primeiro e a partilhar segredos logo a seguir, com aquela urgência electrónica tão peculiar e sem expectativas, que se cria e se desfaz de dia para o outro, que tem de ser alimentada para se manter. Se não o tivesse sido, não estaria a escrever estas linhas.

Temos pouco a ver um com o outro. Os gostos, as experiências de vida, as emoções do momento, o momento na vida, os ideais, a música, a energia. Tudo diferente. A mim encantaste-me com um desafio, no teu signo a minha sina. A ti não sei bem, mas não restava opção que não ficarmos rapidamente amigos. A pequena química da diferença, talvez.

Conhecemo-nos e saímos umas vezes, e foi bom. Descontraído, relaxado, animado e divertido. Ficava vontade de repetir.

Disseste-me um dia sermos muito sérios um com o outro. Foi quando a provocação e o jogo começaram. As regras muito claras, as escritas logo no início deste texto, mas ainda assim um jogo de sedução, animado e divertido, com picardia, de gato e de rato - mas quem é quem? Acho que somos ambos gatos, e abrimos a época de caça.

Lançámos os dados por um beijo, mas ia beijar-te fosse qual fosse o resultado, ontem à noite. Assim que te vir, ameacei-te com a promessa. E adorei os teus lábios, o teu pescoço, respirar-te ao ouvido, sentir-te a presença, o sorriso divertido de miúda mulher, o calorzinho no peito.

Foram poucas horas. Somos, ou Fomos, amigos com cor. Com benefícios, foram as tuas palavras.

E agora? As regras continuam a ser as mesmas. Somos sinceros um com o outro. Tu tens a tua vida, eu tenho a minha. Somos amigos, e o resto logo se vê. No worries.

Escrevi-nos isto só para registar na História (estória?). Pode ser que interesse a algum investigador, daqui a muitos muitos anos.



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