Rapaz, Maria
Espertos foram os que
ficaram lá dentro. Quando as balas perdidas começaram a cravar-se nas paredes, a
partir os vidros, e a penetrar nos corpos dos incautos, espertos foram os que
ficaram lá dentro.
“A Maria-rapaz”, era como me chamavam na escola quando era miúda.
Adoptei o nome quando cresci, usava o cabelo curto e vestia como lembrava ao
meu pai que se finou na guerra em Flandres dois anos depois de eu nascer. “Sou a
Maria Rapaz”, dizia com uma pausa a não deixar espaço à ambiguidade sobre a inexistência
do hífen, ao mesmo tempo que tirava as pistolas tapadas pela samarra, e atrás
de mim entravam o Diamantino e o Urbano, já com as Tommys apontadas a
funcionários e clientes sem discrição ou discriminação, e com meia face coberta
por lenços pretos.
Mas a vida andava difícil, tanto para nomes como para cognomes.
O governo do Salazar deu à GNR uns jipes com rádios recebidos dos alemães, e tínhamos
uma hora se tanto para limpar as caixas de bancos, caixas agrícolas ou CTT, amontoar
os cofres de metal em sacos de serapilheira, e sair dali a toda a brida ao
volante do Venâncio – que aprendeu a conduzir o Citroën Traction Avant preto que
o tio trouxe de França e que foi o primeiro carro que se viu em Brinches. E para
mim, se é para fazer, é para fazer bem feito - não deixar uma moeda no fundo de
uma gaveta sequer. Mas o tempo não dava para tudo, e a vida andava mesmo
difícil.
Em Sobral da Adiça o golpe foi simples, mas não rendeu mais
que um punhado de escudos e ainda foi preciso gastar umas balas para afugentar curiosos
corajosos. Abalámos pela noite para Puerto Peñas, onde o taberneiro alugava um
quarto privado e todos os duvidosos da região se reuniam até o vinho adormecer sobre
as mesas com o sol a raiar. Mas nessa manhã não raiaria.
“SOY EL CAPITAN ÁNGEL DE LOS CARABINEROS! SALGAN DE AHÍ CON LOS BRAZOS EN ALTO, CABRONES!”
Nunca tinha visto o Capitão Ángel, nem o seu famoso bigode
preto, mas conhecia-lhe a reputação brutal nas fronteiras com Portugal e França,
e não se passaram dois minutos para ver da janela do 1º andar - enquanto calçava
as botas - uns quantos mal despertos saírem de mãos no ar. Seria a última súplica que fariam. “Es aquel!!!”, disse um dos Carabineros, a apontar para um jovem efeminado, e o grito
despoletou os disparos.
Nunca mais vi o Diamantino, o Urbano ou o Venâncio, mas não
os imaginava numa prisão espanhola, e os fogachos de luz já voavam também em direcção
aos carros policiais. Saltei pelas traseiras, aproveitando para navalhar sem
hesitar o pescoço do taberneiro traidor e da sua mulher pequenina que se escondiam na
casa da lenha, e desapareci na serra das Peñas para nunca mais ser vista em
terras de Portugal y Espanha.
Dizia-se que na América é que a vida andava fácil.