quarta-feira, 19 de junho de 2013



Menos Quatro em Munique

Esta é a história das quatro pessoas que não apareceram para o embarque do voo de Munique para Lisboa no dia 17 de Junho de 2013.

Pelas janelas rectangulares do avião, vimos os cubos de bagagem a ser descarregados para a plataforma, e um senhor arredondado e a transpirar do calor do sol, a verificar a etiqueta de cada uma das malas que depois atira para o chão. O piloto, primeiro em alemão e depois em inglês, explica que quatro pessoas fizeram check-in mas não apareceram no embarque. É preciso encontrar-lhes as bagagens antes de arrancar. O senhor arredondado encontra uma dessas malas, um saco preto desportivo, e atira-o para longe com particular energia. Depois de arrumar o resto das malas de volta, arrasta-a pelo chão para o camião de brincar que a leva juntamente com as restantes, encontradas essas por dois moços de cabelo curto espigado, um deles turco e chamado Onur. O voo parte pouco depois, e aqueles quatro ficaram para trás.


Anya tem 28 anos, e vai com o namorado Robert de férias a Portugal, pela primeira vez. Querem conhecer Lisboa, leram sobre a boa comida, o bom tempo, uns tais de pasteis de belém, o rio e a praia de areia dourada, com um mar do sul que lhes parece irremediavelmente quente. Ela sente-se mal no aeroporto, enjoada, e começa com vómitos. Ele está desamparado, entre a preocupação com ela e com o voo para as primeiras férias juntos. Anya ficou branca, sem susto a justificar, e com tensão baixa. Falaram com o médico no aeroporto, mandou-os de urgência para o hospital. Suspeitava o que seria, mas não podia ter a certeza. Poucas horas foi tudo esquecido. Anya e Robert vão ser pais.

O senhor José Nakamura, nos seus sessenta e oito anos, vai voltar à cidade que viu por instantes há mais de 30 anos atrás. Brasileiro, largou São Paulo e tudo o que tinha para ir trabalhar no primeiro restaurante de sushi de Berlim. Nunca se conseguiu ambientar ao ambiente ou às pessoas, mas os dias passaram sem deixar muitas marcas, conseguiu abrir em nome próprio outros 3 restaurates na cidade, e depois expandiu-se. Gostava da neve e da calma de Munique, e divertia-o por dentro a Oktoberfest que parecia fazer os alemães soltar as amarras controladas do dia-a-dia. Primos, e família que nunca tinha visto e que já nem todos tinham nomes japoneses, iam estar em Lisboa a conhecer os Jerónimos e comer o tal Bacalhau com azeite da tradição por-tu-gue-sa (pronunciavam sempre assim a palavra). Foi atropelado por um taxi com um casal inglês ao entrar para o aeroporto. Iam para Londres, moravam em Greenwich, e estavam atrasados para o seu voo. Ele um consultor financeiro, ela decoradora de interiores com predilecção por padrões floridos. O condutor estava distraído, não travou ao negociar a pressa de chegar às partidas. Conseguiram embarcar a tempo.

Tem 48 anos, vai a uma reunião de trabalho em Lisboa com a equipa de gestão da multinacional de seguros em que é gestora. Vive sozinha, tem dois cães, uma casa com um pequeno relvado e um pinheiro nórdico, um filho de 18 anos que vive com o pai. Passa horas no ginásio, tem o corpo torneado de alguém que se preocupa com imagem, usa saltos de 3 dedos, saia azul presa nos joelhos, camisa branca impecável, óculos que costumam estar assentes no cabelo louro escuro preso atrás, numa mão um smartphone, na outra a mala do portátil. Não tem tempo a perder, e sabe sempre onde o põe. Na porta G33 de embarque para Lisboa, ainda está ao telefone a ultimar pormenores para os dois dias em que vai estar fora. Ouviu a última chamada para Lisboa, a poucos metros de distância, com os olhos desfocados. Deixou a mala com o portátil, o telemóvel, e os óculos numa cadeira, e duas horas depois embarcou anónima para Marrocos.


E foram felizes para sempre, aqueles quatro que não apareceram para o voo de Munique para Lisboa no dia 17 de Junho de 2013. Menos o senhor José Nakamura, mas já teve uma vida muito cheia.



sexta-feira, 29 de março de 2013



José e Maria

José sentia a transpiração, que lhe encharcava a camisa com o calor abrasador que vinha de cima e deixava tudo seco e quente ao toque. Dos cabelos escassos e normalmente secos caíam pingos que levantavam pó seco ao tocar o chão, como uma bomba atómica no mar. A sombra que fazia no chão era o local mais agradável de todo o mar de calor em seu redor, de tão quente que lhe subia pelas calças adentro, fazia transpirar as pernas, o aquecia a ferver. Sentia nas mãos os nervos de uma pequena árvore rugosa, morta, que queimava ao toque, e onde não encontrou nada que pôr na boca. José estava molhado por fora, mas seco por dentro, e na boca seca só entravam as gotas salgadas que escorriam do rosto.

A casa estava perto, e sentia no ar um vago cheio a feijões, o almoço que imaginava na boca e saboreava, a água fresca onde queria encher-se e mergulhar o rosto, mas não conseguia abrir os olhos, a luz branca e quente do céu cegava-o, o calor roubou-lhe o caminho de casa. José estava parado, apoiado na pequena árvore, a tentar adivinhar o rumo para Maria.

Na casa quadrada de uma divisão só, como um oasis na terra amarela frinchada por milhas e milhas em todas as direcções, Maria encostava o nariz aos vidros quentes, à espera de José perdido. Beijou-o com os lábios generosos, como se beijando o vidro beijasse a José e a tudo o que estava lá fora, e aquele sinal marcado em cada um dos quatro pontos cardeais o pudesse guiar de volta. Chamou por ele baixinho, na sua voz calma e segura, pediu que não se demorasse, disse que precisava dele, que nunca devia tê-lo deixado sair com aquela idade.

Respirou fundo, deixou húmido o vidro em que tinha acabado de deixar um O, e foi abrir a arca. A tampa chiou, no silêncio ouviu-se com perfeição cristalina a fechadura de metal a bater e ceder. As mãos procuraram o tecido em fibra por baixo de todos os cobertores de lã, as camisolas que lhe picaram a pele há mais de 70 anos, quando brincava nos jardins onde os pés se enterrava com um sploch na neve, as camisas brancas e arejadas com cintura delgada de menina, de quando a grande seca ainda não tinha começado. Lembrava-se de ser branco, de ser fresco, do cheiro a novo que agora tinha sido substituído pelo de poeira e anos acumulados.

Vestiu-o, supreendendo-se por o corpo de 80 ainda caber no vestido do corpo de 20, e por ter deslizado com tanta facilidade. Arrastou os pés descalços pelo chão de madeira morno, sentindo os sulcos entre cada ripa, puxou a cadeira de madeira em frente à mesa, com pratos postos, o mesmo feijão que de tantos anos já lhes sabia a todos os dias, mas que os confortava aos dois, com o cheiro que enchia a casa quadrada de uma divisão só. Esticou a mão para a jarra de água fresca, puxada do furo profundo debaixo da casa, sentiu no frio do vidro as gotas de água gelada que continha, e sentou-se para esperar.

 

 

E quando já não o esperava, e em toda a casa nem o pó se mexia no ar, sentiu o rodar da maçaneta a encher tudo.

 

(proposto pela Sofi)



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