planeta absolutamente anormal
Foi inseminado
para nascer, numa família normal num bairro normal de uma cidade normal de um
país normal. Nove meses depois nasceu, limitado apenas pela biologia dos
sentidos que a cada dia aprendia como dominar. Parecido a todos os outros, mas
silencioso. Não foi daqueles bebés que fazem os pais saltar da cama
estremunhados e a esfregar os olhos enquanto resmungam resignados deixa eu vou. As vezes que o ouviram
chorar foram raras, e parecia que só quando os olhos atentos e brilhantes não
conseguiam perceber o que lhe estava a acontecer.
Com o passar dos
anos cresceu. Um rapaz normal e saudável sempre com aquele silêncio e olhos atentos
brilhantes. Tendia a ficar a brincar sozinho com as suas coisas adorava pintar, ou encostado a uma
parede a ver os outros jogar à bola, e só aquele ar de que algo não estava bem
o manteve a salvo da adolescência e colegas belicosos. As colegas olhavam-no
com curiosidade de longe, mas o excesso de atenção e a diferença mantinham-nas
à distância.~
Os pais
levaram-no ao médico, perguntaram se era autismo ou asperguer, mas os
diagnósticos não eram conclusivos. Puseram-no a fazer desporto – excelente como
guarda-redes sabia sempre onde a bola ia parar, a tocar piano –boa técnica mas pouca
imaginação, a fazer teatro – era o primeiro a decorar textos e marcações, mas automático
e sem emoção. Acabaram por desistir e aceitar. Afinal, era normal, não fosse o silêncio
e os olhos quase assustadoramente atentos.
Esperavam que
fosse estudar matemática ou ciências, mas o interesse no secundário foram as
áreas humanas. Devorava tudo o que fosse filosofia, biologia, sociologia, antropologia, política,
psicologia e estudava com fascínio a igreja, populismo, regimes fascistas,
desigualdades sociais, pobreza, conflitos. Parecia querer compreender tudo.
Num pequeno-almoço
num sábado de manhã, 16 anos recém-feitos, perguntou à mãe
“Mãe, o que é o Amor?”
Quase largou o copo,
de tão inesperada a pergunta. Hesitou e começou com a conversa que já esperava não
ter de ter,
“Não é isso, eu
sei o que é o Sexo, reprodução e conheço o Corpo Humano. Como é que descubro o que
é o Amor?”
No secundário o
silêncio e olhos atentos atraíam, já não era só o estranho silencioso de olhos atentos, sempre encostado a uma parede
com um pé dobrado e um livro nas mãos, mas o moço inteligente e misterioso com boas notas que se dizia
ser de pais estrangeiros e que parecia inspirar sedução com os movimentos
elegantes e a madeixa de cabelo solta sobre a testa.
Quando uma moça magra
de olhos quase tão atentos como os seus, por trás de óculos protectores sobre
um nariz empertigado, com vários livros nos braços, se foi sentar ao seu lado
sem dizer palavra e só com um olhar trocado brilho com brilho, estava escrito
que a resposta se ia escrever nas vidas dos dois.
Com ela descobriu o que havia para descobrir, do Amor e da Paixão, em tudo o que têm de mágico
e calmo e intenso e doentio. Os corpos, o enlear e a transpiração na
pele e os lábios entreabertos colados e a saliva e as curvas das pernas entrelaçadas, e o
ser-se animal com outro corpo que nos quer consumir tanto quanto nós a ele… E
quando meses depois ela mudou para outra cidade normal no país normal, com o
final do ano de estudo e o Verão a limpar o céu de nuvens, percebeu que tinha a
resposta que lhe faltava.
Saiu de casa de
noite, caminhou quase três horas na noite quente para fora no bairro
normal da cidade normal. Sentou-se de pernas cruzadas no cimo de um monte, com
a via láctea por cima, árvores e uma ligeira brisa nos braços sem mangas, e com
um sussurro percebi, fechou os olhos e deixou o país
normal do planeta absolutamente anormal.
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