sábado, 27 de fevereiro de 2010



Eu faço os dias

Já não tenho paciência para os aturar. Tanto de dia, como de noite, 90% dos meus clientes são homens. Estou FAR-TI-NHA.

Partilho um táxi com a Gisela, da Guarda. O patrão acha que ter mulheres ao volante é bom para o negócio.  Eu faço os dias, ela as noites. No bar, é ao contrário. Ela faz os dias, eu as noites. Os homens de Fernão Ferro sempre preferiram as roliças na passerelle, e babam-se quando me vêm tirar peça de roupa depois de peça de roupa. Pena serem um tesos, se não fossem já não andava nisto.

Há dias reparei num que todas as noites aparecia à minha hora, se sentava bem à minha frente, e ficava a beber um whiskey e olhar-me com ar tímido. Dias a fio disto chamaram-me a atenção para ele. Doidos destes já os conheço bem. Acabou por me pedir uma dança, e balbuciou que se chamava José e me admirava muito, queria casar comigo, amava-me e achava-me a mulher mais bonita do mundo. Não lhe dei resposta, e despachei o serviço que me ia pagar a revisão do carro na garagem.

Hoje chamaram-me para um serviço no Barreiro, e quando chego entra-me no carro o José, de mão dada com uma mulherzinha baixa. Queriam ir para o aeroporto. Vi-o ficar vermelho que nem um chouriço quando me viu, e quase me ria para dentro.

Deixei-os na Portela e parei na estação de serviço para beber um café e fumar um cigarro.

“Malandros. São todos uns malandros.”, pensei ao cuspir a beata e voltar para o carro.

 

(este texto foi o exercício final do curso de escrita de viagens, um desafio de escrita livre, com base num conjunto de elementos fornecido por um colega: taxista de dia – Ernestina e stripper à noite – Priscila; o texto devia incluir ainda uma garagem, uma bomba de gasolina, um copo de whiskey, e ser passado em Fernão Ferro). O colega em causa chama-se José… (nota: pseudónimo)].



quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010



Vermelho da cor de chouriço

Qual foi o meu melhor pôr-do-sol? Lembro-me de mais nasceres do sol do que de pôres-do-sol. O que não faz sentido, sabes que sou noctívago. Um de cada? Tenho de pensar. Lembro-me de um pôr-do-sol em Dubrovnik, pouco depois de chegar à cidade. Não foi especialmente bonito, e o céu não ficou vermelho da cor de chouriço, mas lembro-me desse, e que havia o brilho do sol no mar, daqueles que nunca ficam bem nas fotografias. Nascer do sol lembro-me de um nos Açores, em São Miguel. Passei a noite aninhado no carro, desconfortável e tapado com um saco-cama, para ver o sol a nascer na Ponta da Madrugada. Hem? Como foi? Estava nublado, não vi nada. Que pôr-do-sol gostava mais de ver contigo? Só me fazes perguntas difíceis, ainda para mais a esta hora da manhã, amor. Deixa pensar. No Pólo Norte, talvez. Quando o sol se põe por seis meses. Queixam-se os vinte e nove de fevereiristas de barriga cheia - lá em cima, só há um dia por ano. Sabes que os Inuit acreditam que se cantarmos ou assobiarmos para a aurora boreal, ela nos leva para o outro mundo, ou mais prosaicamente vem e nos corta o pescoço? Ainda hoje contam a estória às crianças. Já não chegava o medo do escuro, que começa com o pôr-do-sol.

Vamos?

[viagens… um texto sobre o pôr-do-sol]





Par

Deram-me os dois pauzinhos num restaurante chinês no Soho em Londres, para assinalar os 20 anos de existência do local. Eram todos diferentes uns dos outros, e os que escolhi são pretos e decorados com motivos simétricos em branco no topo, com uma pequena bolsa de tecido bordeux a mantê-los juntos. O final da refeição trouxe também o obrigatório bolo chinês, que dizia: “When you find the other pair, you will have found your pair”. Pareceu-me enigmático já na altura, e provavelmente uma tradução errada.

Isto foi há quase 3 anos, e desde aí andei sempre com os eles.

 

Conheci-te ontem, numa conferência a que ambos viémos. Simpatizámos um com o outro, e combinámos um jantar oriental na ChinaTown de Seattle. Caminhámos juntos do Hotel, escolhemos um restaurante pela cor do néon sobre a porta, entrámos e sentámo-nos. Escolhemos na ementa o 37 e o 42, e pedimos duas Tsin-Tao para acompanhar a conversa.

Quando veio a comida, a fumegar numa chapa quente, vi-te tirar da mala – como que em câmara lenta - uma pequena bolsa de tecido bordeux que mantinha juntos dois pauzinhos chineses, pretos e decorados com motivos simétricos em branco no topo.

Respirei fundo, irrequieto por dentro e nervoso demais para falar, e tirei os meus do bolso do casaco. Os pares eram idênticos ao mínimo pormenor.

 

[inspirado em… dois pauzinhos chineses, pretos e decorados com motivos simétricos em branco no topo, mantidos juntos por uma pequena bolsa bordeux]



sábado, 6 de fevereiro de 2010



Heróis do Bar

«Depois de rodadas consecutivas de margaritas, “Pablo y Sus Muchachas” – assim auto-denominadas ao fim de 4 dias no México – não tinham como não “borrachos”. O pior era que, na mesa ao lado, uns mexicanos puros com ar de poucos amigos estavam igualmente “borrachos”…»

… os tons de voz exaltavam-se com o avançar da noite, e começaram a picar-se os locais e os estrangeiros, com desafios indirectos de um lado em espanhol e em portinhol do outro.

O Bar estava cheio, o ambiente denso e com fumo, um barman de pescoço curto atrás de um comprido balcão de madeira servia impávida e eficazmente. Quatro grandes televisões debitavam decibéis e desporto para quem o quisesse ver.

Pablo, a vedeta da banda portuguesa, não aguentou a tensão no ar, e levantou-se com ar solene. “Muchachos, bamos a cantar la gloria de Portugal!” As “muchachas”, que por cá seriam conhecidos por João, Rui e Zé, levantaram-se também em volta da mesa, de copo na mão e a limpar a garganta.

“Heróis do maaaaaar…” É difícil, cantar o hino em ritmo mariachi.

O bar ficou em silêncio. Curiosamente, não hostil, mas com respeito. Quando a atrapalhada cantoria terminou, os outros presentes, da mesa ao lado e não só, replicaram solenemente com o hino mexicano.

Estavam feitas as pazes, entre gargalhadas e brindes. Pouco depois, começava o Portugal-México do Mundial. O México perdeu. Mas ninguém se importou muito, já eram amigos.

 

[Exercício do curso de escrita de viagens: completar, em 10 linhas (… que excedi claramente), a frase inicial entre aspas]



quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010



Cidades às Escuras

Dia 11 de Março de 1999, Rio de Janeiro. Estava de férias num dos hotéis virados para a praia de Copacabana, no 44º andar. O dia pacífico tinha incluído passeios, praia e frequentes “Ois?” perante o nosso português rápido. Preparavamo-nos para sair para jantar quando a luz se apagou.

O interruptor não funcionava. No corredor, escuridão total. Tentámos ligar para a recepção, mas não havia som no telefone. Faltar a luz num hotel é incomum, pensei. Reparámos depois que lá fora também não havia luz. Toda a praia, todos os prédios, a iluminação na rua, o horizonte, tudo escuro. As únicas luzes eram de alguns poucos carros na avenida, também eles tão devagar que se diriam surpresos.

No dia seguinte, soubemos que tinha sido o maior Apagão do Brasil, e que 70% do país tinha ficado às escuras.

Acabámos a jantar barras de cereais e chocolates no calor da noite, sem vontade de descer as escadas, a ver a lua no céu e no mar e os pirilampos na estrada. Parecia que estávamos sozinhos no mundo.

 

[Outro exercício do curso de escrita de viagens… um micro-conto verídico com menos de 1000 caracteres]



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010



Ganharam. Mas estavam a jogar em casa

Estou no Tarrafal, em Cabo Verde, com o Bruno. Está calor, mas não tanto quente que nos incomode, dois portugueses numa viagem de mergulho. As casas são baixas, as cores esbatidas e gastas fazem lembrar o Alentejo no fim do Verão, o chão é de quadrados de pedra, são poucas as árvores e o verde.

Nada disto é turístico, e somos dos poucos estrangeiros na vila. O “resort” tem um guarda armado com espingarda colonial e dois cães patuscos como ajudantes, e arame farpado em volta, por causa dos “roubos que havia antigamente”, como me disseram, em referência ao período pós-independência. Os chalés luxuosos são feitos em cimento armado por pintar, as camas de pinho. Os dois quartos estão decorados com imagens de santos, paredes verde-claro, tule nas janelas, e uma televisão minúscula - em que o Bruno quase não consegue ver o Benfica - completa o quadro.

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O dia começou bem cedo, antes do sol nascer devagar sobre a Baía do Tarrafal. Saímos para um  pequeno-almoço numa sala circular parca em iguarias e delicadezas de conforto ocidental, mas amigável e hospitaleira. Cinco ou seis pessoas faziam-nos companhia no fim do mundo. Em algumas das janelas havia macacos a espreitar atentamente, e só percebi a razão  quando um deles entrou a correr pela sala, num ápice agarrou duas bananas, e correu de volta para a porta. Um crime imperfeito, mas eficaz.

Ao episódio cómico matinal seguiu-se um mergulho. Fomos guiados pelo Carlitos por entre o coral amarelo, com o Zezinho a ficar no barco por segurança. Os dez metros de visibilidade não deixaram que fosse um mergulho perfeito, e o ar que respirávamos sabia a óleo, mas estas dificuldades foram compensadas quando o meu parceiro inusitadamente arpoou um belo peixe prateado que trouxémos para cima. Foi directo para uma panela quando literalmente e com algazarra invadimos a cozinha do Restaurante da lindíssima Ni, onde íamos todos os dias comer o melhor bife de atum do mundo. Cabo-verdeana e casada com um italiano, seduziu-nos com os pratos e com a beleza. Não tenho adjectivos que cheguem para descrever a refeição, que acabámos por partilhar com os donos da casa, mas deixou-nos a todos um sorriso nos lábios e nas barrigas.

Quando saímos a tarde já ia a meio, e demos uma volta pelo mercado. Numa das ruas ouvimos o matraquear familiar de bolas de madeira contra bonecos de metal. Seis rapazes em volta de uma mesa de matrecos entretiam a tarde domingueira com o mais adequado dos desportos. A mesa é abaulada, as bolas quase pretas, e as pernas desiguais, mas nada disso importava. Os jogos são à melhor de dois, com a equipa que perde a sair de jogo. Muita dinâmica e vivacidade. Acabámos por desafiar os dois campeões a jogar uma partida connosco, um Cabo Verde-Portugal a puxar pelos ferros e chutar com força. Três moedas depois, e com alguma transpiração na testa e nas mãos, concedemos uma vitória renhida num jogo divertido e animado.

Ganharam. Mas estavam a jogar em casa.

[Outro exercício do curso de escrita de viagens: uma crónica (verdadeira)]



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