Meia Pessoa
Há um livro do Saramago que diz nas primeiras páginas:
“Cuidado. Tem uma pessoa dentro.”
O nosso personagem apoderou-se desta frase para livro muito seu. De capa preta, páginas muito brancas, escrevinhava em letra muito pequena e irregular os mais secretos pensamentos, no escape do quotidiano, no grito surdo para uma página de papel, numa organização de ideias e amores e raivas e paixões e alegrias.
O livro crescia todos os dias, como o livro do Destino, engrossavam-se as histórias que continha, os segredos secretos nunca destinados a ser lidos, apenas escritos, como aquele segredo gritado para um buraco numa árvore para lá ficar. Continha todas as histórias da humanidade.
Diz-se que na maioria dos casos de violação o violador é conhecido da vítima.
Um dia, um violador roubou esse depósito de experiências e sentimentos. Apoderou-se da vida alheia, dessa pessoa que habitava dentro das páginas muito brancas do livro de capa preta. O nosso personagem sentiu um rombo no corpo e na vida, como quem perde um membro num acidente, sentiu-se sem aquilo que de mais íntimo tinha na sua vida, da sua própria vida.
Sem a parte da pessoa dentro do livro, tornou-se uma pessoa diferente, a pessoa que restava.
E odiou, com todas as suas forças.
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